Fico feliz que voltou a chover por aqui. O cheiro de água em asfalto quente bateu no nariz como a nostálgica lembrança de um tempo bom e as plantas logo mostraram um verde que meus olhos tinham se esquecido que existia. Mas tenho, em particular, motivos para crer que a volta das águas apenas amainou uma situação mais que insustentável e pretendo abordar o assunto de forma técnica, profunda e com a máxima seriedade.
A escassez foi difícil para todos, mas receber parentes em casa nesse período tão crítico me obrigou a tomar medidas extremas, as quais compartilho com o leitor amigo, na forma de dicas para o bom proceder numa situação futura.
Primeiro chegou a enrugada tia Dulce e eu apenas comentei, por alto, que todos se conscientizassem e tomassem banhos mais rápidos, atentassem ao escovar os dentes, essas coisinhas de racionamento para os fracos. Mesmo assim acabava a água antes do dia acabar. Então adotamos o sistema “1 não, 2 sim”, onde só se dá descarga no “número 2”. Há certo constrangimento nisso, mas logo verão que não há constrangimento algum nisso, perto da amplitude que a palavra constrangimento pode atingir.
Eu já pensava em radicalizar mais, pois a adoção dessas medidas parecia inócua, quando chegou o enrugado tio Custódio, esposo da Dulce. Nunca gostei muito desse tio, que fala espirrando perdigotos e tem um leve déficit de audição. Além de ser uma pessoa a mais para ocupar o meu sofá, era um banho a mais, mais louça pra lavar e mais um detalhe, o tio Custódio tem um desvio de caráter que o leva a evacuar de cinco a oito vezes ao dia, o que sabotou por completo o sistema “1 não, 2 sim”. Ele ainda tem T.O.C. de limpeza, que o impele a utilizar compulsivamente a duchinha higiênica. Sendo assim, precisei exercitar meu despotismo e tirar a bondade do coração para evitar um mal maior.
Soltei uma circular proibindo qualquer ocupante da casa de evacuar mais que duas vezes ao dia. Comprei uma caixa de areia para gatos com a qual presenteei o tio Custódio, deixando à sua disposição no quintal. Aconselhei a utilizar mais de madrugada, evitando chamar a atenção dos curiosos. Espacei os banhos para dias alternados e liberei a ingestão máxima de três copos d’água/habitante/dia.
Logo na primeira noite ouvi o Custódio descendo as escadas e, não que eu seja curioso, fui fiscalizar. Surpresa a minha quando vi que ele não estava usando sua caixinha de areia, mas, astuto que só, queria burlar a regra dos três copos, tomando a água do aquário do Geraldo, nosso peixinho. Quando ordenei que parasse, ele não parou, velho surdo! Tive que arrancar o recipiente de suas mãos e adverti-lo por meio daquela mímica com os dedos médios, mas era tarde demais. Geraldo agonizava no fundo seco do aquário. Raciocinei e por uma intuição divina, depositei rapidamente o pequeno animal no vaso sanitário, o que salvou sua vida. Coloquei um cavalete de trânsito sobre a tampa da privada com alertas sobre a presença de um ser vivo naquelas águas. Uma peneirinha foi deixada ao lado, para que o Geraldo fosse removido a cada cagada, principalmente para que não fosse atingido pelo cocô no coco, porque, a essa altura, eu já havia aumentado o rigor da lei, passando os banhos para cada sete dias e as descargas para dias alternados, de modo que pescávamos o peixe antes, fazíamos o serviço rapidinho pro Geraldo não morrer de ar e logo o despejávamos novamente no vaso. Geraldo só aparecia para os xixis, que oxigenavam um pouco seu habitat (nesse sentido, orientei que todos urinassem com bastante força para fazer bolhinhas). Geraldo demonstrava a gratidão de um cão, nos dias alternados em que acionávamos a descarga, sempre nos lembrando de peneirá-lo antes.
Apesar dos esforços, não se via esperança no horizonte. Fiquei indignado quando pedi dois galões de 20 litros à distribuidora de água. Em 10 minutos o motoboy tocou a campainha sem descer do veículo. Abri a porta com o pagamento, mas ele nem recebeu. Fugiu com os dois galões dizendo “perdeu, otário!” e se encontra foragido até hoje. Acho errado, pra que fazer isso? Não comentei o incidente com minha família e passei a encher meu galão vazio na água do laguinho perto de casa, que é quase semi potável.
Nesse período me distraía do calor, do fedor, do Custódio e da Dulce, vendo televisão, mas isso me deixava ainda mais apreensivo. No jornal anunciavam que a nova moda nas academias era a dança da chuva. Fiquei chocado ao ver os jogadores do meu time se espancando num tumulto generalizado por causa de um copinho d’água atirado por um torcedor vândalo. Odeio os vândalos! Porém, assistir ao futebol do lado do tio Custódio me mostrou a única coisa positiva que viera com a seca. Ele xingava o juiz mas já não havia perdigotos respingando no meu rosto, oh glória!
Para piorar, com o assoreamento fecal, Geraldo adoeceu. Acho que foi estresse ou depressão. Então fizemos uma reunião de emergência na qual ficou decidido que ele iria para o copo da dentadura da tia Dulce. Ela veio com uma frescura de que não queria um peixe cheio de coliformes junto de sua perereca, mas chegamos a um acordo e passando-lhe um lencinho umedecido, deixei suas escamas reluzentes como novas, para que fosse introduzido em seu novo aquário com sua nova companheira. Geraldo se apaixonou a primeira vista pela dentadura e a cada manhã tia Dulce precisava separá-los a força.
A essa altura eu só pensava em matar minha sede, ou me matar ou então matar o tio e a tia, que já estavam muito mais enrugados do que antes e agora ainda faziam caretas. Se um dos significados de “humor” é “líquido”, realmente ninguém mais naquela casa tinha humor, muito pelo contrário, todos enfezados. Mas a vida é essa batalha diária e tem gente que convive com secas mais intensas e muito mais duradouras que a nossa sequinha paulista de classe média. É uma questão de adaptação e mudança de hábitos.
“Como que por encanto”, uma semana após a eleição, a chuva voltou. Sei que alguns vão me acusar de teórico da conspiração, mas tenho dados irrefutáveis que incriminam todos os políticos nessa questão da estiagem, mas não cabe no momento. A vida voltou a ficar mais cheia de vida depois que as chuvas vieram e meus tios se foram. Infelizmente Geraldo não quis se separar da dentadura e também nos deixou, mas vamos nos adaptar.