Mesmo com o assunto constantemente abordado pela mídia e por entidades da sociedade civil, o que continua em jogo é o intrincado relacionamento entre empresariado e políticos. A ADI proposta pelo Conselho Federal da OAB tem, na prática, o intuito de moralizar essas relações e acabar com o financiamento privado, conhecido como corrupção legalizada.
A entidade pediu ao STF que avalie a Lei 9.504/1997 (legislação eleitoral brasileira) no item que permite às empresas privadas fazer doações para campanhas, a partidos políticos e ao fundo partidário. A visão da Ordem é de que o sistema atual cria uma situação desigual ao permitir que pessoas jurídicas, que não são agentes diretos das eleições, tenham um peso muito grande no processo, em detrimento das pessoas físicas, que são agentes diretos da política. A OAB solicitou, ainda, que o tribunal casse os dispositivos do texto que estabelecem um limite para as doações feitas por pessoas físicas e que o Congresso Nacional seja instado a editar legislação sobre o tema.
Manobras e protelação
A matéria já teve relatório favorável do ministro relator da ADI, Luiz Fux, votos favoráveis de seis ministros e um voto de divergência, aberto pelo ministro Teori Zavascki. Quando faltava a posição de Gilmar Mendes, em abril, o ministro pediu vista, interrompendo o julgamento. Embora não tenha dado entrevista à RBA, Mendes disse, durante participação num evento do Judiciário, que não “é justo ser acusado de fazer manobras para tentar adiar a decisão com o gesto”, para favorecer a tese das doações, sobretudo porque a campanha está em plena realização. “É uma irresponsabilidade ficarem fazendo esse tipo de piada”, observou.
As críticas ao fato de o ministro Gilmar Mendes ter segurado a matéria partiram, principalmente, das entidades que têm realizado manifestações pela realização de uma reforma política no país o quanto antes. Dão conta de que o magistrado tenta, com a iniciativa de protelar a questão, aguardar alguma posição relacionada a matéria legislativa pelo Congresso Nacional, em atendimento a pedido feito a ele por alguns deputados e senadores, dentre os quais o líder do PMDB na Câmara, Eduardo Cunha (RJ) – neste caso, a proposta seria de favorecer a manutenção do sistema atual, com forte peso das doações feitas por pessoas jurídicas.
Em maio passado, voltou a ser formado um movimento entre parlamentares para idas ao STF em busca de conversas com Gilmar Mendes. O que se comenta em alguns gabinetes de lideranças na Câmara é que a preocupação se deu diante da possibilidade de que, a poucos meses do início das eleições, alguma decisão dos ministros despertasse um clima acalorado que pudesse levar a questionamentos ou mesmo interrompesse previsões de financiamento nas eleições.
Eduardo Cunha, que além de líder é um dos políticos que tem a missão dentro do PMDB de receber doações que são rateadas entre os demais candidatos, não foi pessoalmente a nenhum desses encontros. Contudo, teria enviado intermediários, de acordo com um deputado da mesma legenda, segundo o qual “houve preocupação latente em relação a isso, sobretudo por parte do PMDB, PP e DEM”. Procurado, Cunha não retornou aos contatos da RBA.
“O principal problema em relação a isso é o sistema político. Nosso sistema eleitoral é insustentável, baseado no abuso do poder econômico. Não podemos falar de impunidade, porque muitas coisas estão feitas de acordo com a lei. Há coisas que são toleradas e até estimuladas pela legislação eleitoral. Daí a necessidade de mudança”, diz o juiz Marlon Reis, autor do projeto que resultou na Lei da Ficha Limpa e que lançou recentemente livro sobre as complexas relações entre políticos e financiadores.
Os pedidos para que o ministro apresente logo o voto foram reforçados por meio de uma petição apresentada pelo presidente da OAB, Vinícius Furtado, no final de junho, ao relator da ADI no Supremo, ministro Luiz Fux. No documento, Furtado Coelho, em nome da entidade, pede para que Fux use a função de relator para pressionar por celeridade no julgamento.
Marcus Vinícius Furtado Coelho destacou que o sistema de financiamento privado cria desigualdades no processo eleitoral e afasta os que não têm como buscar recursos para campanhas. Isso transforma as desigualdades econômicas em desigualdades políticas, atrapalhando a democracia. “Pessoas jurídicas são entidades artificiais criadas pelo Direito para facilitar o tráfego social e não cidadãos com a legítima pretensão de participarem do processo político-eleitoral”, destaca trecho do texto encaminhado por ele a Fux.
Preocupação parlamentar
A sugestão da OAB é que passe a ser permitida apenas a doação por pessoas físicas, mediante limites a serem apresentados por meio de proposta legislativa a ser apreciada e aprovada pelo Congresso. “Para uma pessoa de rendimentos modestos, não há anormalidade na doação de até 10% dos rendimento, mas, quando esse limite é transferido para um bilionário, o sistema se afigura excessivamente permissivo”, acentuou Furtado Coelho.
Em voto, o relator Luiz Fux não apenas enfatizou que a permissão de doações de campanha propicia a interferência do poder econômico sobre o poder político, processo que tem se aprofundado nos últimos anos, como também apresentou dados consistentes que comprovam isso. O ministro mostrou, no relatório, planilhas de valores gastos em campanhas no Brasil, segundo os quais, em 2002, foram gastos R$ 798 milhões.
Já em 2012, o valor saltou a R$ 4,5 bilhões – um crescimento de 471%. Os dados apresentados pelo ministro, resultado de pesquisa em vários órgãos oficiais, principalmente o TSE, apontam que, na comparação com outros países, o gasto per capta do Brasil nas campanhas supera os da França, Alemanha e Reino Unido. E, se considerada a proporção com o Produto Interno Bruto do Brasil, o gasto com doações é maior do que o observado nos Estados Unidos.
Luiz Fux salientou, ainda, que o valor médio gasto por um deputado federal eleito no Brasil em 2010 chegou a R$ 1,1 milhão. De um senador, R$ 4,5 milhões. E que o financiamento das campanhas é feito por um universo pequeno de empresas, sendo que os dez maiores doadores correspondem a 22% do total arrecadado. “O exercício de direitos políticos é incompatível com as contribuições políticas de pessoas jurídicas. Uma empresa pode até defender causas políticas, como direitos humanos, mas há uma grande distância para isso justificar sua participação no processo político, investindo valores vultosos em campanhas”, argumentou.
Com visão mais polida em relação ao tema, o ministro Marco Aurélio de Mello, que foi por duas vezes presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), votou favorável ao pedido da ação da OAB, mas entendeu que o financiamento de pessoas físicas pode ser feito também, embora com restrições e critérios, uma vez que se configura “um dos meios de cada cidadão participar da vida política”. Para Mello, ao contrário das pessoas físicas, “não se pode acreditar no patrocínio desinteressado das pessoas jurídicas. Deve-se evitar que a riqueza tenha o controle do processo eleitoral em detrimento dos valores constitucionais compartilhados pela sociedade”.
O ministro Ricardo Lewandowski, atual presidente do STF (prestes a ser empossado no cargo), por sua vez, declarou que o financiamento de partidos e campanhas por empresas privadas, do modo como é autorizado hoje pela legislação eleitoral, fere o equilíbrio dos pleitos e deveriam ser regido “pelo princípio de que a cada cidadão deve corresponder a um voto, com igual peso e valor.”
Aplicação da norma
O que ficou em dúvida para a conclusão da votação, após a entrega do voto de Gilmar Mendes, é quanto ao caráter da aplicação da norma após ser declarada a ilegalidade do financiamento privado de campanhas.
Muitos dos ministros acreditam que a questão deverá ficar com o Congresso Nacional, como inclusive pediu a OAB, mas o relator da ADI, Luiz Fux, que tem o aval de outros ministros com o mesmo pensamento, é da opinião de que o tribunal pode determinar algumas regras temporárias até o Legislativo se manifestar sobre o caso, o que seria visto como forma de pressionar deputados e senadores a acelerarem a tramitação e votação da matéria legislativa.
Oficialmente, o presidente do Congresso, senador Renan Calheiros (PMDB-AL), já informou, por meio de assessoria, que até o julgamento do STF chegar ao final não vai se manifestar a respeito. E enquanto a discussão mostra como será quente essa briga após o período da eleição, o financiamento privado de campanhas continua ditando as regras dos principais candidatos nestas eleições.
“Não dá mais para falar em aguardar para ver. Agora, é escolher bem nossos candidatos e ir à luta para fazer com que essa prática perversa acabe de fato”, frisa o estudante de Direito da UnB e militante do Movimento pelas Eleições Livres, Rodrigo Amaral, que já programa a organização de uma manifestação até a sede do STF em outubro, para pedir a continuidade do julgamento.
Os números registrados até agora pelo TSE deixam claro que as doações estão a todo vapor, independentemente de partidos. Este ano, as empresas que mais financiaram candidatos, não apenas à presidência, como a governos estaduais e a vagas na Câmara e Senado, foram a JBS Friboi, AmBev e a construtora OAS. Dentre os 11 candidatos à presidência, o montante de financiamento privado recebido já ultrapassou R$ 30 milhões. E os dados são referentes apenas à primeira rodada de prestação de contas eleitorais.
“O sistema político terminou se transformando, com o passar dos anos, na expressão das vontades e anseios do grande empresariado, para que seus interesses sejam preservados. Desse modo, fica difícil assegurar a democracia e manter projetos desenvolvimentistas para o país. Está na hora dos brasileiros trabalharem para colocar um fim nessa prática tão desproporcional”, avalia o cientista político Antonio Camaro, da Universidade de Brasília (UnB). (RBA)