Por Júlio Mangussi
A notícia sobre a liberação do policial que assassinou o camelô, no centro de São Paulo, é triste. Mas, os comentários sobre a decisão da juíza são tão tristes quanto. O que leva as pessoas a chegarem a tal ponto, de maldade e insensibilidade, de culparem o camelô pela sua própria morte? Carlos Augusto Braga, vendedor de DVDs piratas, deixou quatro filhos. Será que esses comentaristas sabem disso?
O vídeo, forte e revoltante, sequer emociona essas pessoas, pelo contrário. Apenas em um mundo do absurdo, ao avesso, seria possível defender o policial, porém defendem. Vomitam possíveis argumentos técnicos – ainda que esses façam sentido apenas no papel-, como se a vida se resumisse a uma cartilha. A desumanização dos mais pobres, realizada tanto pelo Estado quanto pela mídia, não é de hoje. Isso não é novidade. Mas a vida dele vale tão pouco assim, tem apenas o preço de algumas cópias de filmes de Hollywood?
Carlos, junto com a esposa, planejava mudar de ramo, abandonar as calçadas. Não vai mais. Nunca mais. As pessoas estão perdendo a noção da fragilidade da existência. A banalização da morte- principalmente dos que menos têm e que mais morrem- invade as casas e entorpece, intoxica, com doses diárias de programas policiais ou filmes violentos.
São quatro crianças, entre cinco e 12 anos, que não terão mais um pai. No Natal, não receberão mais presentes pelas suas mãos. Não terão a oportunidade de compartilhar os seus planos e desejos. Pois, quando Carlos teve aquela bala cravada na cabeça, acabou para SEMPRE todos os seus sonhos. E, também, todos os sonhos de sua esposa e filhos. É isso, quando alguém morre, não é um corpo, números de contas ou um RG que deixam de existir nesse mundo, não. São expectativas e esperanças de vidas possíveis que somem, na mesma velocidade de um tiro. Os comentários entristecem exatamente por isso. Torna-se claro que, para muitos, nem todas as vidas são dignas, merecem ser vividas.
“Quando a gente tem filhos, esquecemos de nós mesmos e tentamos dar o melhor para eles”, relatou a viúva durante o velório. Essa frase é emblemática. Qual pai ou mãe não se esforçou ao máximo para agradar um filho? Que seja para comprar um brinquedo mais caro no final de ano, ainda que o orçamento esteja apertado. Os interesses entre as pessoas parecem diferentes, mas, no fundo, não são. Apesar disso, abutres argumentam que o policial apenas cumpriu a lei. Reagiu ao ataque do camelô, desarmado que não representava nenhum risco. Outros, repletos de ódio, chegam a insinuar que, caso não fosse um “criminoso”, se fosse um “cidadão de bem”, não teria esse final. Tentam o impossível: vitimizar o assassino, o policial.
A morte de Carlos está impregnada de contradições e ironias perversas. Se pensar na fria realidade, foi o próprio morto que comprou a bala que o matou. Pagou os mais variados tributos para morrer, financiou a própria injeção letal, ainda que sem saber. Outro ponto é que, provavelmente, algum parente próximo do assassino – ou mesmo o próprio-, assim como qualquer outra pessoa, já comprou algum produto de uma banca de camelô. Mas, exagerada, despreparada e violenta, a força policial não quis saber de hipocrisias e foi usada contra esses trabalhadores. Já a revolta dos que nunca têm voz, como sempre, não é objeto de reflexão. O simples e popular pensamento de “se colocar no lugar do outro”, jamais passa na cabeça desses comentaristas.
O caso não foi isolado. A PM de São Paulo mata – e muito. Apenas no segundo semestre, foram 424 mortes, 62% a mais do que em 2013. Talvez, seja possível afirmar que o vídeo, a gravação do assassinato, sim, seja uma exceção. “A justiça é como as serpentes: só morde os descalços” disse Monsenhor Óscar Arnulfo Romero, arcebispo de San Salvador; talvez ele nunca estivesse tão certo. (Por Julio Mangussi)