Dada a atualidade do pensamento antropofágico oswaldiano, o site “Outras Palavras” tem publicado diversos textos sobre o escritor na série especial “Oswald: um escritor e pensador indispensável”. Reproduzimos abaixo um dos textos que fazem parte da série, de autoria do próprio Oswald. Escrito em 1954, o texto fala da construção do movimento modernista, discute o papel de seus protagonistas e a interminável vaia que elite paulista lhes dirigiu, revelando, ao mesmo tempo, as opiniões contundentes do escritor.
O Modernismo
Na garçonnière da Praça da República1, começou o Modernismo. Arrastei para lá Mário de Andrade. Ali estiveram Di Cavalcanti, Menotti del Picchia, Ribeiro Couto e até uma vez o futuro acadêmico Gustavo Barroso.Como qualquer movimento literário, esse se processou no início sem esquema, sem passaporte e sem justa definição. Tratava-se apenas de oposição e de revolta que, refletindo as agitações da Europa, se erguia sobre o marasmo das letras e das artes nacionais.
Mário de Andrade era um show. Sua alta estatura, sua mulatice risonha exprimindo-se numa dentadura faustosa, sua voz cálida e cantarolada, seu amor pela música e pelo folclore e sua cultura incipiente esplendendo no deserto letrado de Piratininga, tudo fazia com que em torno dele se congregassem amigos e medrassem devotações. A confusão reinava. Ninguém sabia ao certo o que era ser moderno. Este conceito vinha se propondo através das mutações do século. Mas nossas forças, abafadas pelo servilismo colonial, procuravam dele se libertar.
No livro excelente e fartamente documentado que Mário da Silva Brito está publicando sobre o Modernismo2, fica patente que a renovação se anunciava de há tempos atrás. Eu mesmo dera, pelos jornais e revistas onde colaborava, sinais da inquietação que tomava conta de nossa época.
A literatura e as artes eram o que havia de frustrado e cadavérico. Um longo reinado içara sem contestação, ao topo das gloríolas, a dupla Bilac-Coelho Neto. Lembro-me de que, quando ainda meninote, viajara com meus pais para a Caxambu, aí fui encontrar nas moçoilas locais um apaixonado êxtase pelos versos de Bilac. Havia uma certa Corruxa que recitava pasma a versalhada bem medida e lânguida do poeta. Não se conhecia outra coisa.
No Rio, a Academia Brasileira de Letras, que com o reinado de Machado de Assis alcançara seu apogeu, agora tinha decaído lamentavelmente. A eleição de Amadeu Amaral, para que contribuí, ainda procurou levantar suas forças. Mas o critério de fechar a porta aos novos e só admitir lá dentro os expoentes esclerosavas a instituição.
Quem eram os novos? Apareceu Gustavo Barroso com seus contos regionais, e melhor que ele, uma figura centralizou as atenções. Foi Monteiro Lobato. João do Rio fizera sua aparição fulgurante. Lobato teve a imensa “chance” de ser lançado pela mais alta voz do país, a de Rui Barbosa. E tinha O Estado de S. Paulo para a divulgação de sua literatura.
Foi em Lobato que a renovação teve de fato o seu impulso básico. Ele apresentava, enfim, uma prosa nova. Sua curiosidade como sua cultura, ambas limitadas, não lhe permitiam ir além do seu esforço pessoal. Talvez tivesse receito de se encantar no movimento modernista. Isso trazia, sem dúvida, responsabilidades culturais. Era para homens que haviam sofrido Paris na pele como eu, Di Cavalcanti e Sérgio Milliet. Era para um audacioso original como Mário de Andrade, que arrastava pela sua sedução pessoal inúmeros seguidores. Lobato sofreu sem dúvida a timidez de suas origens provincianas, apesar das leituras que teve, o que demonstra A Barca de Gleyre3. Mas seu terrível orgulho não o deixou fazer fila com gente desconhecida que se aventurava numa empresa temerária e incerta. Ele trazia em si o “Mal de Taubaté”. Nascera para ser promotor de Justiça, advogado ou fazendeiro. Mas, desastrado nos negócios como todo homem votado à literatura, viu logo grandes dificuldades em seu caminho. Foi então que, na utilização de sua poderosa imaginativa que o fez o precursor entre nós, tanto da literatura infantil como dos problemas do petróleo e do ferro, ele se lembrou de fazer uma editora. Ligara-se à Revista do Brasil, centralizava largo círculo de escritores, tinha fãs por toda parte. Mas o comércio não lhe sorriu. A Editora Monteiro Lobato faliu quase arrastando em sua queda o autor de Urupês. Quem o herdou foi um sabido que batia à máquina no escritório, pequeno empregado que se tornou o grande editor Octales Ferreira. Lobato não foi tocado na sua literatura pelo desastre. Ao contrário, seu nome subiu por todo o Brasil.
O Modernismo medrou ao seu lado. Já em 1915, pela revista O Pirralho, que eu fundara muitos anos atrás eu havia publicado um artigo reclamando uma pintura nacional contra as cópias litográficas que abafavam toda nossa intervenção. É verdade que meu artigo trazia um endereço errado. Minhas esperanças se fixavam no pintor Wasth Rodrigues. Não havia outro no momento.
Posso afirmar e já afirmo que sem a presença catalítica de Mário de Andrade o Modernismo teria sido, pelo menos, retardado. Expliquei em minhas Memórias a minha formação tímida, incapaz de afrontar mesmo qualquer situação normal. Na Escola Modelo Caetano de Campos, com sete anos de idade, incumbiram-me de recitar para a professora uma versalhada, feita por um poetastro do nordeste que se hospedara em casa de minha tia Carlota. Eu fiz um escândalo. Chorei, berrei e não me exibi em público. O que me importava era minha casa e minha mãe. Fora dessa dupla tutela me sentia um inútil. Ninguém imagina o esforço feito para liquidar em mim essa primeira timidez. Quando dela saí, saí por explosão. E isso explica muito de minhas atitudes agressivas e insólitas. Era o meio de me recuperar.
Minha longa amizade com Guilherme de Almeida o coloco ao meu lado no movimento modernista. Com ele veio gente do Rio, Ronald de Carvalho, Ribeiro Couto, este trazido por Di Cavalcanti. O movimento engrossava. Mas sem a publicação de Pauliceia Desvairada, o grande livro de versos de Mário, nada se teria precisado.
Mesmo antes da publicação de Pauliceia, eu abri o escândalo, lancei pelas colunas do Jornal do Comércio, edição de São Paulo, um artigo sobre o inédito Mário de Andrade. Esse artigo intitulava-se “O Meu Poeta Futurista”. Era a palavra da época. O “futurismo” se desitalianizara. Em Portugal, por exemplo, Fernando Pessoa lançava nesse momento o seu “Ultimatum Futurista”.
A princípio, aceitou-se sem hesitação o epíteto “futurista”. Depois, começaram os escrúpulos partidos, sobretudo, de Mário de Andrade. Ele, nacional e nacionalista como era, não se sentia à vontade dentro do rótulo estrangeirante. Assim, pouco a pouco, foi encontrada a palavra “modernista”, que todo mundo adotou.
Nunca será demais exaltar uma figura central do movimento modernista. Foi Paulo Prado. A sua modéstia de fidalgo, a sua dupla personalidade de escritor e comerciante, o fato de ter aparecido tarde em nossas letras e mais possíveis complexos fizeram com que Paulo Prado nunca desejasse o primeiro plano. Ele colocava em sua frente Graça Aranha, geralmente confuso e parlapatão, filho duma abominável formação filosofante do século XIX, mas grande homem nacional, pertencente à nossa Academia de Letras, e autor de um livro tabu, Canaã, que ninguém havia lido e todos admiravam.
Era evidente que para nós sobretudo o apoio oficial de Graça Aranha representava um presente do céu. Com seu endosso, seríamos tomados a sério. Do contrário, era difícil.
Sem a inteligência e a compreensão de Paulo Prado, nada teria sido possível. Ele foi o ativo agente de ligação entre o grupo que se formara e o medalhão Graça Aranha.
Paulo Prado abriu-nos sua casa em Higienópolis. Recebia magnificamente. Os seus almoços dos domingos eram faustosos. Além de se comer e beber dentro duma grande tradição civilizada, ali se debatiam os problemas candentes da transformação das letras e das artes.
Pode-se dizer que, depois da pobreza de minha garçonnière na Praça da República, foi a casa de Paulo Prado o centro ativo onde se elaborou o Modernismo.
Acredito que foi Di Cavalcanti que teve a ideia de realização de uma Semana de Arte Moderna. Num paradoxo, muito peculiar a São Paulo, quem prestigiou a Semana revolucionária foi um grupo conservador. Dele faziam parte Samuel Ribeiro e René Thiollier4. Conseguiram eles para nós, de graça, o Teatro Municipal, o primeiro da cidade.
Os elementos do Rio tinham entrado em contato conosco através de Di Cavalcanti. Ele nos tinha revelado um músico estranho que tocava piano num bar e compunha coisas espantosas. Chamava-se Heitor Villa-Lobos.
A esse tempo eu, muito ligado a Menotti del Picchia, que era redator-chefe do Correio Paulistano, fazia com ele grandes descobertas. Tínhamos desencavado, num atelier, do Palácio das Indústrias, um escultor que nos pareceu tímido e pessimista, querendo mudar-se para a República Argentina, pois não encontrava aqui nem repercussão nem mercado para as suas obras. Esse homem, chamado Victor Brecheret, que deve sobretudo a mim a sua carreira e a sua ascensão, tornou-se, depois de milionário, o mais sórdido avarento da história do Brasil. Sem deixar, no entanto, a sua ascensão de artista. O que significa que nada tem a ética com a inspiração e a maestria da fortuna. Dizem, aliás, que Celini foi um miserável assassino. Está certo!
Menotti e eu nos tomamos de paixão pelo escultor e sua obra. O Correio Paulistano, órgão oficial do governo, ficou em matéria de arte e literatura uma pura subversão. Aí, com o pseudônimo Hélios, Menotti desancava o passadismo. Tendo mesmo tido um pega físico na rua com o matusalém da literatura, Aristeo Seixas5.
Desse modo, por toda parte alentava-se o movimento que eclodiu no movimento de 22. Esse foi o instante útil. Festejava-se o centenário da nossa independência política. Exposições e festas por toda parte. Brecheret exibia com escândalo as suas novidades que não passavam, no entanto, de arrojos copiados do balcônico Mestrovick6.
Marcou-se a Semana para o começo do ano. Teve ela início no Teatro Municipal a 13 de fevereiro. Sala cheia, galerias repletas. Graça Aranha, com seu prestígio, fez o discurso de abertura7, um bom discurso que se acha publicado no O Estado de S. Paulo da época. Não houve nenhuma manifestação hostil. Mas nos dias subsequentes produziu-se a estralada.
Nos corredores do Municipal, achavam-se pendurados quadros modernistas, particularmente de Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Rego Monteiro, Nina Aira, Moya8.
Anita Malfatti celebrizara-se por um episódio ocorrido antes, em 1917. Tinha ela, de regresso de seus estudos nos Estados Unidos, onde sofrera o contato da pintura moderna, exposto seus trabalhos num salão da Rua Líbero Badaró. São Paulo, com seu espírito de acampamento, sem tradição nem lei, aceitou aquilo como aceitava os ocasos inflamados do pintor Bassion ou as mediocridades floridas de Paulo Rossi9. Todo mundo ia, gostava, deixava o nome no livro. Acontece, porém, que um dia surge num jornal uma diatribe terrível assinada por Monteiro Lobato, cuja autoridade crescia nas letras nacionais. O título do artigo era simplesmente este: “Cinismo ou Paranóia”10. Lobato xingava de todos os nomes a pintura de Anita.
Essa posição de Lobato em face da arte moderna, ele a conservou até a morte. Foi a posição de um inculto rebelde. Aliás, numa curiosa confissão, ele contou com muita verve como tinha querido ser pintor e fracassado desde a primeira experiência, quando confundiu óleo com aquarela. Ficou, sem dúvida, o complexo, e ele, não tendo nem o instinto nem a cultura necessários à compreensão das transformações plásticas do mundo, arrepiou-se logo com o que lhe feria a embotada sensibilidade provinciana.
Anita, menina nesse momento, sofreu um grande choque. Houve compradores que devolveram os seus quadros. E ficou no ar a onda de hostilidade que depois continuou a persegui-la. Pelas colunas do Jornal do Comércio11, eu tentei defendê-la, mas fi-lo timidamente, pois não tinha autoridade para enfrentar Lobato e sua grei. Meu artigo era assinado pelas iniciais O.A.
A Semana, como disse, realizou-se com grande alarido, particularmente a sessão em que foram apresentados ao público os novos poetas e escritores. A ausência de qualquer padrinho nos atirou às feras. No palco, nos alinhamos Menotti del Picchia, eu, Mário de Andrade, Sérgio Milliet, Ronald de Carvalho, o poeta suíço Henri Mugnier e Agenor Barbosa.
A tela subiu e vi que o teatro estava repleto. Menotti, de pé, iniciou a apresentação dos novos escritores, aproveitando o primeiro silêncio. Ouviram-no atenciosamente até o fim, Aí, disse ele, apontando-me, que, para dar um exemplo do que era a prosa nova, ia eu ler um trecho de romance inédito.
Eu levara comigo umas laudas contendo uma página evocativa d’Os Condenados12, que nada tinha de excessivamente moderno ou revolucionário. Mas a pouca gente interessava o que eu ia ler e apresentar. O que me interessava era patear. Apenas Menotti se sentou e eu me levantei e o teatro estrugiu numa vaia irracional e infrene. Antes mesmo d’eu pronunciar uma só palavra. Esperei de pé, calmo, sorrindo como pude, que o barulho serenasse. Depois de alguns minutos, isso se deu. Abri a boca então. Ia começar a ler, mas nova pateada se elevou, imensa, proibitiva. Nova e calma espera, novo apaziguamento. Então, pude começar. Devia ter lido baixo e comovido. O que me interessava era representar meu papel, acabar depressa, sair, se possível. No fim, quando me sentei e me sucedeu Mário de Andrade, a vaia estrondou de novo. Mário, com aquela santidade que às vezes o marcava, gritou: “Assim não recito mais”. Houve grossas risadas.
O mais gozado de todos foi o estrangeiro Henri Mugnier, que se exprimiu em francês, meio estonteado, sem compreender e aceitou o que se passava. Ronald de Carvalho, teso, pequenino, reagiu. Gritou para os vaiadores que ladravam e soltavam das galerias bexigas sonoras: “Homenzinho do cachorro! Homenzinho do balão! São versos de Manuel Bandeira! São versos de Ribeiro Couto!”
Os concertos de Villa-Lobos tiveram a mesma acolhida terrível. A música nova parecia estapafúrdia àquela gente educada nas doçuras lânguidas de Puccini e de Verdi. O possante sopro do nosso maior compositor foi completamente desencorajado nas noitadas do Municipal. O barulho era tamanho que Armando Leal Pamplona13 decidiu subir ao galinheiro e me convidou para segui-lo. Lá, gritou: “Quem é que está vaiando assim?” Um sujeito pôs-se de pé e gritou violentamente, batendo no peito: “Eu! Eu!” Retiramo-nos. Eu ria. Ronald, que era grande jornalista, certa tarde interpelou-me à saída do Municipal: “Seu Oswald, vieram me dizer que foi você quem organizou essas vaias!” “Eu? Como?” “É, isso é muito desagradável, principalmente para mim que fui premiado pela Academia Brasileira de Letras!”
Como se vê, todos os movimentos se processam da mesma maneira, confusos, heteróclitos, desiguais. O que importa é o impulso e a meta. Essas foram atingidas pelo movimento de 22.
Se procurarmos a explicação do porquê o fenômeno modernista se processou em São Paulo e não em qualquer outra parte do Brasil, veremos que ele foi uma consequência da nossa mentalidade industrial. São Paulo era de há muito batido por todos os ventos da cultura. Não só a economia cafeeira promovia os recursos, mas a indústria, com sua ansiedade do novo, sua estimulação do progresso, fazia com que a competição invadisse todos os campos de atividade. Desde ginasiano eu me habituara a frequentar uma grande livraria da Rua 15 de Novembro, a Casa Garraux, onde o editor José Olympio iniciou a sua carreira. Aí se encontravam todas as novidades da Europa. Editoras, livros e revistas sempre foram preocupações paulistas. Assim, um conjunto feliz de circunstâncias, entre as quais a presença entre nós de dois bons padrinhos, Graça Aranha e Paulo Prado, fez eclodir a Semana no ano em que se comemorava o primeiro centenário da independência nacional.
Texto publicado na revista Anhembi,
São Paulo, nº 49, 1954.