Um fragmento de contra-crítica de arte

Por Marcelo Hilsdorf Marotta

[o que segue não contém spoilers]
Cartaz do filme O Grande Hotel Budapeste, de Wes Anderson, 2014, atualmente em cartaz.

Como destruir completamente a obra de um autor?

A crítica de arte não se reduz em hipótese alguma ao processo de adjetivação, mas é por ela que se deve começar a analisar a pertinência ou não da crítica. Tomem como exemplo o novo filme do diretor nascido nos EUA (lembrando que tanto o adjetivo “americano” quanto “norte-americano” são equívocos geopolíticos), Wes Anderson, chamado na tradução para o português de O Grande Hotel Budapeste, que está em cartaz na cidade de Campinas em algumas salas, para a felicidade dos amantes da Sétima Arte. Cabe já aqui fazer uma menção a um aspecto que passou batido pela crítica: a tradução correta do nome do filme para o português é O Hotel Grande Budapeste, e não O Grande Hotel Budapeste, pois o nome do hotel em questão é Grande Budapeste. Tem uma ligeira diferença de sentido entre uma coisa e outra cuja percepção ajuda a compreender o sentido da obra do Wes Anderson. Para compreender melhor isso, consideremos o que foi publicado pela Folha de São Paulo e o Estadão na última quinta-feira em suas edições impressas – excetuo a crítica precisa publicada pelo Estadão do Luiz Carlos Merten, que é crítico veterano e não um moleque qualquer de 20 e poucos anos que mal saiu da faculdade se metendo a fazer crítica de arte para veículos de grande circulação, pois é mister reconhecer que figuras dotadas de sensibilidade, repertório, dom para a escrita e conhecimento de causa não surgem mais por ai como surgiam no passado, já a estrutura global de educação mudou muito nas últimas décadas e, convenhamos, o terreno do que antes era a “Cultura” nos folhetins jornalísticos se voltou nos últimos anos quase que totalmente para o público juvenil-adolescente e nada mais provável de uma imprensa bajuladora e ávida antes por quantidade de público leitor do que consistência e qualidade jornalística que contrate figurinhas desenvoltas mas sem estofo mínimo suficiente, que além do mais aceitam trabalhar sob regimes contratuais frágeis e baixos salários, coisa que os críticos que prezam o investimento que fizeram em suas próprias formações e vivências normalmente não fazem. Pois bem, se tomarmos os textos restantes da Folha e do Estadão, basta considerar os 3 adjetivos principais escolhidos para caracterizar a atual obra de Wes Anderson nas suas chamadas de destaque: “Esquisitices“, “Surreal” e “Excêntrico”, para termos uma amostra bem razoável do que é, ou do que não é a crítica de arte feita ai e, como consequência, do que não é o filme em questão.

Para quem conhece nominalmente a obra de Mr. Anderson, não é muito difícil adivinhar de onde foi tirado o último adjetivo: trata-se de um mecanismo rasteiro que confunde a obra do diretor com a tradução rasteira feita em português para caracterizar uma parte de uma de suas obras, Os Excêntricos Tennebaums, que no original é entitulado de The Royal Tennebaums, ou seja, Os Tennebaums Reais, pois se a família representada pode ser considerada excêntrica, o filme como totalidade não pode; já a escolha de “surreal”, para qualquer um que pretenda falar de uma obra de arte, deveria ser objeto de absoluta cautela e critério, pois como muitos sabem – inclusive os mais leigos – há todo um movimento artístico bastante complexo que se desenvolveu mais ou menos em torno desse conceito – o Surrealismo, talvez o movimento artístico mais conhecido pelo público em geral, dada a enorme popularidade das obras de um de seus mestres, Salvador Dalí -, mas comparativamente não há absolutamente nada que ligue ou aproxime estética ou ideologicamente as obras que costumamos chamar de surrealistas da obra de Wes Anderson; por fim, “esquisitices” é mais uma não-adjetivação, isto é, pura preguiça, etnocentrismo e incapacidade diante do desafio de tentar compreender em que campo semântico opera a obra de um artista.

Diante disso, não é necessário aqui perder tempo analisando o restante da “crítica” oferecida pelos dois veículos, pois o que se disse acima já a contempla. E prefiro me abster por enquanto de falar da obra do Wes Anderson num sentido mais amplo, mas ofereço para vocês como um fragmento de contra-crítica de arte dez adjetivos alternativos no lugar desses três oferecidos porcamente pelos jornais, e espero que com isso fique claro aqui o convite aos amantes de cinema para que não deixem de assistir o filme o quanto antes – e conhecer, obviamente, o restante da obra do diretor:

A obra de Wes Anderson – e o filme O Grande Hotel Budapeste – é:

Preciosista
Meticulosa
Cômica
Delicada
Terna
Levemente ácida
Sutil
Onírica
Pueril – no sentido stricto do termo, ou seja, como algo relativo ao universo do puer e da puella, isto é, das crianças;
Diorâmica – isto é, relativa aos dioramas, criações ou re-criações em maior ou menor escala da fantasia e/ou da realidade, sem necessariamente uma intenção realista por trás, tal como se pode ver em algumas obras de arte contemporâneas, que fogem do realismo presente nos dioramas mais antigos para abusar da imaginação.

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