Acordou, mas não saiu da cama. Rolou pra desgrudar a preguiça do corpo e imaginou, pelo minúsculo Sol que driblava a cortina, qual seria a cara daquele dia. Logo sentiu o inigualável cheiro de hoje que os dias têm. Só então, planejou seus passos. Tinha mais 10 minutos de lençóis e meia hora pra se arrumar e se dirigir ao trabalho.
Precisava fazer dinheiro, aquele dia. Teria de concentrar-se, ser agressivo, competitivo, astuto e frio. Sabia que à menor desatenção, perderia negócios importantes e espaço para a concorrência. Seu trabalho consistia em devorar, ávido e selvagem, não deixando sobras pra ninguém, e em crescer sem limites. Afugentar os que atravessassem seu caminho, aniquilar os mais fracos e aproveitar suas sobras. Ampliar seu território, adentrar territórios alheios e criar novas fatias de mercado. Não podia ter escrúpulos, mas precisava demonstrar que tinha. Consistia também em manter um relacionamento submisso e amigável com os mais poderosos, até que essa balança pendesse pro seu lado.
Levantou-se e seguiu os passos programados. Deixou o carro no estacionamento e caminhou rumo ao escritório. No caminho de uma quadra, deu pouca atenção ao trânsito caótico, aos ônibus lotados de vidas indo para o trabalho, à teia que ligava aquelas vidas à sua, à brisa fresca, ao céu azul com nuvens fofas cortado pelos fios da rede elétrica, ao trabalhador, no alto de um poste que fazia a manutenção daquela rede, até ouvir o estrondo, se assustar com o clarão, sentir o cheiro forte de queimado e ter os passos interrompidos pelo baque de um homem carbonizado caindo em seu caminho.
O tempo ficou parado enquanto ele tentava assimilar. Olhou para o morto e pro exsudato escuro que sujava seu sapato e a calçada. Olhou para o ônibus e notou que as vidas dentro dele, olhavam pasmas, para a morte repousando sobre seus pés. Atentou ao garoto com a cara colada no vidro do coletivo, que olhava pra dentro de seus olhos, com o mesmo assombro com que os outros olhavam pro cadáver. Desviou o olhar pra cima e desejou ser a nuvem mais leve. Queria entrar naquele céu azul, mas não podia.
Entrou no ônibus. Sentindo o inigualável cheiro de agora que os instantes têm, pagou seu bilhete, mas pulou a catraca e caminhou sorrindo, no amontoado de gente, até a poltrona do garotinho espantado. Pediu licença à mãe e beijou a testa do menino. Afrouxou a gravata e se dependurou na barra de pendurar gente ao teto do ônibus. Alguns passageiros ainda fixavam os olhos perplexos no defunto da calçada, que ia ficando pra trás. Outros estranhavam o sorridente rapaz de terno que adentrara ao veículo, depois de tropeçar num corpo que era vivo até segundos antes. Ele olhou com atenção as expressões que o rodeavam e não pode conter o ímpeto de despejar o carinho acumulado, abraçando o velho ao seu lado e envolvendo no abraço, um rosto com rugas de dignidade e histórias. Encarou então, a moça de trajes simplórios e cabelo desgrenhado, num assento mais ao fundo e sem conter o ímpeto de ser verdadeiro, se aproximou e disse que ela era muito linda.
Sentiu leve incômodo ao se questionar se era mesmo correto que estivesse se sentindo tão bem, mas preferiu se sentir bem a ter desconforto. Puxou a campainha de parar ônibus e pensou se alguém teria puxado a campainha de parar vida, daquele sujeito da rede elétrica. Antes de descer, piscou para o garoto, deixou seu paletó com o velho e retribuiu ao sorriso lindo da moça linda de cabelos desgrenhados, com um sorriso que ele tinha guardado num lugar que não sabia.
As pessoas do ônibus iam se distanciando e agora o olhavam de longe, com desconfiança. Ele riu como raramente ria, ao notar a ironia de se saber muito mais confiável agora do que no resto todo de sua vida adulta. As pessoas confiavam mais nos sérios de terno e desconfiavam dos felizes, dos de gravata frouxa, dos de roupas surradas e de cabelos desgrenhados.
Ele pensou em quantos planos o homem do poste teria feito ao acordar para aquele dia e deixou de acreditar que precisava fazer dinheiro. Ele pensou em para onde os planos que ele vinha fazendo há tantos anos o estavam levando e para onde levavam as pessoas contra as quais lutara com tanto afinco e estupidez.
Ele pensou que, se o atual momento poderia ser o último, valeria a pena gastá-lo prejudicando alguém, criando uma guerra para que outros continuassem depois de sua morte. O prejuízo dos outros, poderia de alguma forma, trazer o seu benefício? Passou, então, a encontrar seu benefício, não num papel pelo qual tinha aprendido a dar a vida, mas em rostos marcados de dignidade e de histórias pra contar. No rosto de crianças, cheios de sinceridade e histórias pela frente. Na beleza que não precisava de salões e nem de padrões. Na vida feliz, que o permeava, incubada e que se acendera com o choque daquela manhã. Teve consciência do tamanho da ilusão em que vivera, sem aprender, com tantas mortes, antes da do homem da força e luz. (Luis Fernando Praga)