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No lugar onde linchavam inocentes

No lugar onde linchavam inocentes
Num passado remoto, um lugar escondido, um arrabalde que nem aparece no mapa, contava com um conjunto de 3 poderes equilibrados para nortear os rumos da sociedade.
Apesar de ser um recanto bem pequeno, havia lá uma série de tribos, cada qual com seus costumes e culturas. Dentro de cada tribo, havia pessoas com suas particularidades, carências, qualidades e defeitos, mas todas eram regidas pela mesma norma, afinal, os poderes mantinham o equilíbrio perfeito, igualando ou eliminando qualquer diferença que pudesse existir.
Havia o poder “Permito e Proíbo”, que estipulava o que era correto e o que era errado de se fazer naquela sociedade, criando regras de conduta que deviam valer para todos, independente das tendências individuais, ou coletivas inerentes à cada tribo.
Também o poder “Ordeno”, que decidia se as normas criadas pelo poder “Permito e Proíbo” eram mesmo boas, aprovando ou não a aplicação dessas normas à sociedade. Em situações especiais, ele próprio criava normas convenientes para que os outros seguissem, a fim de conseguir administrar direito tudo aquilo.
O poder “Decido”, decidia quem estava e quem não estava cumprindo as normas que os outros dois poderes estipulavam além de escolher a punição adequada para quem não cumprisse. É confuso, mas por exemplo: ficava decidido que as pessoas que roubavam maçãs deviam ser presas, as pessoas que matavam, deviam ser mortas, as pessoas que mentiam, deviam receber choques elétricos e assim por diante, para cada defeito, uma punição.
Porém, havia o inconveniente de, em alguns casos, a pessoa que roubou a maçã (lembro que as pessoas lá, tinham defeitos), podia dizer que não tinha roubado, e cabia ao poder “Decido”, decidir se ela mentia ou não.
Não tinha como evitar certos favorecimentos, ou medidas tendenciosas, ou julgamentos equivocados, se os poderes fossem exercidos pelas pessoas da comunidade, pois como vimos, elas tinham seu próprios problemas e angústias e por mais que tivessem qualidades, tinham vaidades, defeitos e deslizes de caráter, podiam roubar, matar e mentir, todas elas e administrar a vida dos outros não é tarefa fácil.
Então, criou-se nesse lugarejo o que chamavam de democracia. Na democracia, aquelas pessoas com diferentes tendências, qualidades (lembrar que elas tinham qualidades, poderá ser importante um dia, no decorrer do texto), e defeitos, se juntavam e escolhiam deuses que controlariam 2 dos 3 poderes.
Devido a ser, o ato de julgar, uma função muito mais nobre e difícil, os deuses do poder “Decido” eram escolhidos pelos outros deuses amigos deles, já que não se poderia colocar nas costas daquela população defeituosa, a responsabilidade de escolher um deus tão importante.
Os deuses se misturavam ao resto da população até o ritual de passagem chamado “eleição”, quando ficava patente sua divindade e eram intitulados tão infalíveis, adorados e inquestionáveis, que num passe de mágica, criavam uma condição de existência harmônica.
Mas a espécie que habitava aquele pequeno planeta, era um pequeno planeta que nem estava no mapa, tinha tantos, mas tantos, mas tantos defeitos, que nem os deuses venciam consertar tudo de errado que eles faziam.
Os deuses começaram a ficar estafados, muito serviço acumulado e já olhavam pra baixo sem a menor expectativa de que aquilo pudesse mais dar certo. Então decidiram governar de um jeito que só eles entendiam, para que não se estressassem mais, porque deus também é gente e foram colher os merecidos benefícios da divindade, se não, do que valeria ser deus?
Passaram a governar em troca de favores, dízimos e outros mimos. Por exemplo, uma das tribos que habitava aquele planeta, os vilmetões, possuía e cultivava o “bufunfu”, alimento preferido dos deuses e era tratada por esses, quase que de igual pra igual. Por outro lado, representantes de tribos que não cultivavam o bufunfu, como os xadrezes, que tinham a pele xadrez e os sifúzios, que eram alérgicos ao bufunfu, eram esquecidos pelos deuses.
Como não podiam receber nada em troca, os deuses, por motivos administrativos, pediram  aos seus amigos, deuses do poder “Decido” que deixassem decidido de antemão que os defeitos dos xadrezes e sifúzios eram piores que os defeitos dos vilmetões. Assim, as cadeias eram superlotadas por xadrezes e sifúzios, enquanto que os poucos vilmetões encarcerados, eram sempre desafetos pessoais de algum deus mais poderoso.
As pessoas comuns, pouco a pouco, iam se adaptando àquela situação imposta pelos deuses, visto que a vontade de deus, como aprendiam desde que nasciam, era inquestionável e os deuses ficavam severamente contrariados se eram contrariados.
As pessoas passaram dizer que não tinham defeitos, porque quem tivesse defeito ia pra cadeia ou coisa pior e os deuses não gostavam de defeitos, então foram se tornando muito hipócritas, fiscalizando atentamente os defeitos alheios e fingindo que não tinham os seus próprios.
Invariavelmente, alguém cometia algum deslize e as pessoas sabiam que a justiça dos deuses iria eliminar da sociedade aquela fruta podre, se ela fosse xadrez ou sifúzio, fazendo com que fosse preso, sofresse muito ou morresse ou tudo isso junto, para que ninguém cometesse o mesmo erro novamente.
As pessoas, para se sentirem melhor e superiores umas às outras, passaram a excluir e odiar quem o deus do poder “Decido” julgava como culpado.
Não percebiam que os erros da espécie continuavam em cada uma delas, e por milhares de anos ficaram alimentando os deuses e o ódio entre elas, que só aumentava. Achavam odioso o irmão que desrespeitasse a vontade dos deuses, porque os deuses eram perfeitos e tinham feito de tudo para que eles também fossem perfeitos, mas alguns insistiam em dar problema e pecar.
Se esqueciam de estudar os reais motivos dos defeitos, não questionavam se eram mesmo defeitos ou se apenas características que feriam a hierarquia dos deuses. De tanto fiscalizar e odiar quem tivesse “defeitos”, as pessoas não se lembravam de tentar melhorar a si próprias e nem evitavam cometer atos realmente ruins para a sociedade, desde que escondido. Como todos os erros eram motivos para punição, as pessoas fingiam que não erravam e rapidamente procuravam alguém para culpar, pra ver se a culpa e a punição, desapercebidas, passassem por elas e recaíssem sobre os outros.
Porém o tempo passa e as pessoas evoluem. Vendo que os deuses, depois de tantos anos, cansados e desgastados, apesar de ocorrerem eleições periódicas, não vinham suprindo suas necessidades nem resolvendo problemas muito básicos, século após século, decidiram dar uma mãozinha aos deuses, da forma que haviam sido ensinados (odiando, culpando e castigando) a fim de controlar a barbárie vigente.
Não notaram que estavam a um passo de entender o poder dos deuses e perceber que eram apenas pessoas vaidosas e limitadas como eles, mas que se escondiam atrás de privilégios ancestrais e para quem a desinformação geral fazia bem, fortalecia e mantinha o status quo.
Mas as pessoas, depois de tanto tempo iludidas, aprenderam a se subestimar e não acreditavam que seriam capazes de mudar sem a ajuda dos deuses, apenas julgando a si próprios com isenção e equilíbrio, ao invés de gastar o tempo de suas vidas julgando os outros, competindo, mentindo para si e odiando pessoas com “defeitos”, exatamente iguais a elas, pois, do contrário, teriam nascido numa outra espécie.
Aí começaram a dividir com o deus do poder “Decido”, a tarefa de julgar pessoas como elas, mas não elas próprias e todo mundo passou a temer todo mundo. Claro, era bem mais fácil condenar e punir os que já estavam acostumados ser condenado e punidos, sifúzios e xadrezes.
Como julgar os outros é mais difícil que julgar a si mesmo, as pessoas passaram a cometer os mesmos equívocos que os inadvertidos deuses cometiam. Condenavam inocentes. Se juntavam em grupos de dezenas de justiceiros para apedrejar e matar inocentes por todo o mundo. Não percebiam que dessa forma, diminuíam o número de inocentes e aumentavam o número de culpados e hipócritas. Não percebiam que nem todos os “defeitos” careciam de uma punição imposta por eles.
Então, aquele planeta foi tomado por pessoas de mentalidade limitada, mesquinha e covarde, que viam que nada ia bem, mas preferiam continuar vivendo de acusar os outros pelos seus problemas e dizer “esse mundo tá perdido!”. E parecia que estava mesmo…
Entretanto, numa longínqua aldeia daquele planeta, algumas pessoas se arriscaram a pensar diferente. Se arriscaram a questionar os deuses. Se arriscaram a acreditar em seus sentimentos bons. Se arriscaram a desobedecer as ordens com as quais não concordassem. Se arriscaram a tolerar e entender os motivos alheios. Se arriscaram a conviver com as diferenças. Aprenderam que os diferentes jamais fariam tanto mal a eles, quanto eles próprios vinham fazendo há tanto tempo. Aprenderam que retaliação trazia retaliação e ódio trazia ódio. Acreditavam que todos iriam morrer, mas se conseguissem morrer sem ter que matar ninguém, estariam dando chance e tempo para mais alguém aprender e ensinar. Aprenderam a ver o lado bom das diferenças. Aprenderam que, ver os outros felizes, cada qual à sua forma, trazia a felicidade para mais perto de cada um. Aprenderam a abrir as portas e a abraçar os dissidentes daquela outra mentalidade. Aprenderam a dividir e a dizer “esse mundo é maravilhoso!” (Luis Fernando Praga)
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