Devido aos cem anos de nascimento da escritora Carolina de Jesus, muita coisa foi dita e publicada recentemente sobre sua vida e obra literária. No entanto, para além das efemérides, Carolina de Jesus ainda é uma autora pouco estudada na academia, muitas vezes vista de forma distorcida pela crítica, e ainda pouco conhecida do grande público, já que boa parte de sua obra literária ainda é inédita, ou seja, nunca chegou a ser publicada.
Na contramão desse cenário, Raffaella Andréa Fernandez, 35 anos, é uma das principais estudiosas da obra de Carolina de Jesus no país atualmente. Raffaella desenvolve a pequisa de doutorado “Narrativas de Carolina Maria de Jesus: processo de criação de uma poética de resíduos”, no Departamento de Teoria e História Literária da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Seus estudos sobre a obra de Carolina começaram em 1999, quando ela cursava Ciências Sociais. O contato com a obra fez com que Raffaella migrasse para o curso de Letras, onde poderia realizar um estudo mais aprofundado da obra da escritora.
Aos poucos, foi ganhando destaque na sua pesquisa a noção de uma “poética de resíduos”, feita a partir dos restos, das sobras de um processo, uma condição que certamente era a dela e dos demais habitantes expulsos dos centros e empurrados para as margens. Tal poética atravessaria o processo criativo da autora, segundo Raffaella, que também destaca a importância de seus diários e cadernos na construção das suas narrativas, ou melhor, de suas “escrevivências”, revelando sempre um diálogo entre a obra de Carolina e as experiências vivenciadas por ela na então nascente periferia de São Paulo.
Em uma entrevista exclusiva concedida ao Carta Campinas, Raffaella nos conta detalhes de sua pesquisa, fala dos impactos que a mudança da escritora de sua cidade natal, em Minas Gerais, para São Paulo, provocou em sua obra, da inapropiação de críticas que tentam adequar a obra de Carolina a um cânone que a própria obra implode, além do quanto a sua condição de mulher favelada, ou melhor, excluída, está no centro do “corpo a corpo com a fome, com a manutenção da dignidade e com a busca pela emancipação feminina”, presentes nas suas mais de cinco mil páginas manuscritas.
Carta Campinas: De onde surgiu o interesse em estudar a obra da escritora Carolina de Jesus?
Raffaella: Comecei a estudar “Quarto de despejo: diário de uma favelada” de Carolina Maria de Jesus em 1999 quando iniciei meus estudos universitários no curso de Ciências Sociais na Unesp de Marília. Na ocasião, relacionava esta a obra ao relato de uma ex-menina de rua “Esmeralda, porque não dancei?” com o objetivo de realizar uma análise sociológica para pensar quais as mudanças ou continuidades no lugar social da mulher pobre e negra no Brasil no espaço de 50 anos que separavam os dois testemunhos. No entanto, ao ler Carolina de Jesus notei a força literária que marcava suas narrativas de vida como “Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada” , “Meu estranho diário”, Diário de Bitita”, seu romance “Pedaços da Fome”, e seus poemas publicados em “Antologia pessoal” com um belíssimo e esclarecedor prefácio de Marisa Lajolo. A partir daí, tive a certeza de que precisaria migrar para o curso de Letras para dar continuidade às minhas reflexões sobre esses intrigantes escritos que me diziam algo além do caráter autobiográfico. Assim, em 2006, defendi a dissertação que intitulei “Carolina Maria de Jesus, uma poética de resíduos”, na qual tracei alguns desses percursos literários na obra de Carolina de Jesus até chegar ao doutorado hoje desenvolvido junto ao departamento de Teoria e História literária.
CC: Quais os objetivos principais de sua pesquisa, suas questões de trabalho? Você analisa algum livro em especial da Carolina ou passa por diversos livros?
Rafaella: A ideia original seria observar, descrever e desenvolver a tese de que Carolina de Jesus cria uma poética de resíduos ao longo de seu processo criativo a partir de seus contos manuscritos e ainda inéditos. No entanto, devido à complexidade do material manuscrito e datiloscrito (escrito em máquina de escrever) acabei por estender a análise, de modo que passo por toda a obra perfazendo uma espécie de cartografia de sua escrita no desvendamento quase arqueológico de sua produção literária e não-literária.
CC: Qual a importância dos cadernos/diários de Carolina para sua obra literária? Você chegou a ter acesso a alguns deles, eles são trabalhados na sua pesquisa?
Raffaella: Sim, a pesquisa é diretamente associada aos originais da autora. Os diários de Carolina de Jesus são relevantes para a construção de suas narrativas, uma vez que todo seu processo de escrita passa pelo crivo autobiográfico. Mesmo em seus romances inéditos como por exemplo, “Maria Luiza”, Dr. Silvio, “A Felizarda”, “O escravo”,”Maria Rita” e outro bastante interessante sob esse ponto de vista, mas sem título, noto o diálogo direto com as experiências vivenciadas pela autora, que podem ser entendidas através do conceito chave construído pela também escritora negra Conceição Evaristo, isto é, as “escrevivências” que modelam, impulsionam e alimentam sua poética de resíduos.
CC: Carolina nasceu em Sacramento (MG) e se mudou para São Paulo em 1947 quando surgiam as primeiras favelas na cidade. Há algum impacto dessa mudança de uma cidade do interior para a periferia de uma cidade grande como São Paulo na obra de Carolina? Quais as heranças que podem ser percebidas da cidade natal na sua obra?
Raffaella: Sem dúvida nenhuma o movimento de migração foi impactante e, inclusive, decisivo para sua formação como escritora, sobretudo porque Carolina de Jesus acompanha a construção dessa periferia paulista. A favela do Canindé estava em construção quando a “poeta da favela”, como se autonomeava”, chega em São Paulo. Como Carolina nos diz em seu texto inédito “Na favela”, precisou carregar diversas vezes taboas para construir seu barraco nessa favela, pois os pobres haviam sido despejados dos cortiços do centro da cidade de São Paulo para que fossem erigidos os”arranha-céus” da grande São Paulo que então se modernizava, mas não tinha espaço para os famintos. Em diversos textos, a autora nos mostra como a força do turbilhão da megalópole incidiu sobre seu aprendizado autodidático e sobre a inclinação literária que de fato possuía: “…As pessôas que reside em são Paulo, são obrigadas a pensar com intensidade pórisso e que o meu cérebro dessinvolveu-se. Eu ignorava as minhas qualidades poeticas. Eu já estava aborrecendo-me e arrependida de ter vindo para São paulo Lá no interiór eu era tao feliz! Gozava a vida. Não tinha enfermidade. Aqui em São paulo, eu sóu poetisa! pensei: Eu hei de saber o que é ser póetisa. Quais são as recómpensas que obtém um póeta. E pensava profunda _ mente na minha vida que já iniciava á preocupar-me procurei numa livraria um livro de póeta, pórque o homem que estava no ônibus menciónou que o póeta escreve livrós. pedi… Eu quero um livro de poeta.”
CC: O nome do primeiro livro de Carolina traz no título a palavra “favelada” referindo-se à escritora. Nessa palavra, vemos unidas duas condições, a de mulher, e a de mulher que vive à margem, no “quarto de despejo da humanidade”, como a expressiva metáfora de Carolina definiu. A essas duas condições soma-se uma terceira, o fato de Carolina ser negra. Qual o peso dessas condições na sua obra literária?
Raffaella: Como disse o poeta negro Osvaldo de Camargo no evento “Prazer em (re)conhecer sou Carolina”, realizado na biblioteca Alceu Amoroso Lima no último dia 22 de março, embora a autora não estivesse preocupada em criar uma literatura do negro, ela expressa uma “fala da pele” , do mesmo modo como o fizeram Cruz e Souza, Lima Barreto ou Luis Gama, pois sua escrita está atada ao corpo negro que possuía com todas suas implicações que lhe avultam. No entanto, seria o corpo a corpo com a fome e a manutenção da dignidade, além da busca pela emancipação feminina que marcam decisivamente o conteúdo de seus textos. De modo que seria a condição de mulher favelada, ou melhor, excluída, no sentido mais amplo que torna-se o termo, o centro de sua denúncia e lemotif fundamental no correr da caneta de Carolina de Jesus em suas mais de cinco mil páginas manuscritas.
CC: Como pesquisadora da obra de Carolina o que você diria aos críticos que receberam sua obra com desconfiança, acreditando que ela não seria capaz de escrever um livro ou que, mesmo tendo escrito, aquilo não era literatura? E à própria classe média que, de certa forma, também a recebeu como um objeto de consumo, algo que despertava curiosidade?
Raffaella: Diria que para adentrar o universo de escrita caroliniana é necessário um novo olhar. Em primeiro lugar, despojado de preconceitos acadêmicos que segmentam e fracionam obras, logo, pessoas em cânones. Além disso, são inapropriadas críticas que pretendem aproximar ou afastar os escritos de Carolina de Jesus do cânone, pois estes, dado a força de escrita engendrada pela mescla da linguagem agramatical e o cultismo da linguagem dos românticos que ela lia, entre outras influências aleatórias que serviam de base para sua escrita, rompem, ou melhor, arrombam as portas canônicas. Outro agravante do olhar precipitado sobre a obra de Carolina de Jesus é acentuado pelo fato de que sua obra literária ainda não foi publicada e os textos que temos à nossa disposição, infelizmente não privilegiaram a inaudita literatura deixada pela autora. A classe média consumiu Carolina de Jesus como produto, de modo que não havia um entendimento da importância daquela escrita, tanto que seu primeiro livro vendeu 100 mil exemplares de uma vez, enquanto o segundo chegou apenas a 10 mil exemplares. Passado o sensacionalismo, Carolina de Jesus ainda tentou publicar outras obras como seu romance “Pedaços da fome”, prefaciado por Alberto Moravia, e que teria sido publicado por uma editora improvisada, assim como o livro de “Provérbios” sem data definida de publicação.
Raffaella: Para além da insistência do estigma da favelada, explorado como testemunho vivaz de uma favelada, a força social das escrevivências de Carolina de Jesus, talvez esteja no fato de que sua escrita mobiliza uma série de questões e valores hierárquicos em decadência que nunca contribuíram para a harmonia da humanidade. Os escritos de Carolina de Jesus estão repletos de constatações desse tipo, pois como concluímos durante o II Festival de Agroecologia & Cultura em comemoração às “Cem primaveras de Carolina”, realizado na cidade natal dela no mês de março, a autora buscava uma relação mais harmônica entre homem e natureza, assim ela explicita e coloca em questão a necessidade do homem viver em harmonia com o espaço, seja rural ou urbano, e com o tempo como arte, recordando e valorizando sua “história menor” e “literatura menor” de acordo com a acepção deleuzeana. Não à toa, Carolina de Jesus continua sendo lida em cursos de graduação e pós-graduação de universidades norte-americanas e nesse momento começa a ganhar visibilidade no Brasil, para além dos espaços da academia, com a distribuição de “Quarto de despejo” nas escolas estaduais de São Paulo. Iniciativas que se sustentam devido à universalidade de seus escritos a empurrar as forças opressivas das margens para o cômodo recôndito centro.