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Muito mais do que uma paisagem fria de concreto e sem alma: Campinas e o Campo Belo, de um sonhador severino

(Imagem de vídeo – reprodução)

MUITO MAIS DO QUE UMA PAISAGEM FRIA DE CONCRETO E SEM ALMA: CAMPINAS E O [JARDIM] CAMPO BELO, DE UM SONHADOR SEVERINO

,Por Christian Ribeiro.

Esse ensaio possuí como intenção de resgatar nessa data de aniversário histórico, os processos de resistências e construções históricas populares que também fazem parte da formação, desenvolvimento e modernização urbana de Campinas. Tendo como ênfase narrativo a constituição do bairro “Jardim Campo Belo” em meio aos turbulentos processos políticos dos anos 1970 e 1980, a partir do semear de nova experiência urbana em solo campineiro, contra todas as normativas e regras vigentes.

Ao qual destacamos o papel do militante político Severino José dos Santos. Numa história por real democracia, igualdade e justiça social plena, em uma cidade historicamente regida nos últimos cem anos por uma sanha imobiliária que a nada respeita, além do lucro pelo lucro. E que se fez enfrentar, foi – e ainda o é – afrontada pela existência-resistência do Jardim Campo Belo.

Um processo de luta urbana popular que não podemos deixar cair em esquecimento, e muito menos se deixar acabar!

A cidade de Campinas é uma cidade formada por sonhos, dos mais diferentes tipos e formas que aqui vieram se dar em realidade. É uma cidade de alma, viva e pulsante por isso. Para muito além de uma mediocridade histórica as quais suas pretensas e medíocres elites tentam imputar. O viés (ultra)conservador, elitista e discriminatório de viés racista e machista, que perpassam o imaginário referente a pólis campinense nos últimos, ao menos, 20 anos, não é a verdadeira face destas terras. Ou ao menos, não é a sua única face.
Um espaço de convivência urbana, um local de esperança e da materialização de novas possibilidades, de novas vidas e existências [BERGER, 1978]. Essa é a poética transformadora que sempre encantou as pessoas que por aqui passaram e resolveram aqui habitar. Uma localidade de pessoas insurgentes e rebeldes. Possuidoras de uma verve, de uma potência pela vida que não se mede por padrões sociais discriminatórios, frios e sem alma. A chama popular que constrói e significa Campinas não se faz medir pelos olhos e noções daqueles que se acham os seus senhores. É essa efervescência libertadora e transformadora que aquece, dá teto, carinho e proteção a todos que ficam protegidos em seu acalanto.
É a essa Campinas, esquecida, renegada e mal celebrada que aqui iremos discorrer. Nos campos e intenções que moveram os melhores sonhos que fizeram parte do processo de modernização urbana entre final dos anos 1970 e começo dos 1980, nessa cidade. No qual a fundação do “Jardim Campo Belo”, no extremo sul da outrora cidade das andorinhas, é das páginas mais belas que ainda se faz escrever desta história, tão longe de seu ponto final. E aqui se fará o registro de uma dentre tantas vidas humanas que com seus sonhos encarnados deram vida a modernização e enriquecimento de Campinas em seu auge desenvolvimentista. Histórias que geralmente não se contam e se fazem esquecer, mas que aqui registraremos…

Nesse sentido, era uma vez, Severino José dos Santos, desde sempre um semeador de sonhos, mais um dos tantos milhões que deram corpos, rostos, suores e alma, a uma das maiores migrações internas do século XX entre final dos anos 1950 até meados dos anos 1970, que representou a implementação de uma industrialização capitalista moderna periférica no Brasil. O transformando de um país rural, essencialmente rural, de estrutura ainda escravagista, para uma sociedade de urbanidade precária e socialmente fraturada. Em sua maioria retirantes nordestinos a se embrenhar por esse grande país continente. Tal qual Severino, nome tão popular e que ressoa, que reflete tanto aquilo que somos como povo… Um nome que emana nossa brasilidade… Homem que aos meados dos anos 1970 começa caminhada para muito além dos limites do Brejo da Madre de Deus, no sertão infinito de Pernambuco.
Pessoa a qual as aspirações e anseios nunca couberam no peito, aliado as necessidades da materiais inerentes a realidade histórica das vidas secas miseráveis dos rincões brasileiros, decide vir para o Estado de São Paulo, desbravar as terras do “Sul – nada – Maravilha”. Descendo literalmente de mala e cuia, aos poucos mais de vinte anos de tenra vida, na Estação da Luz, no meio da cidade que não para, em eterno movimento. Cidade cinza, que engloba e moe como máquina insensível as almas daqueles que ali resolvem fazer de lar. Homem de horizontes sem fim, que nunca aceitou viver o conformismo silencioso dos medíocres, decide ser chama que não se apaga, para não se tornar mais um do exército de autônomos solitários que se esvaiam em alma, para fazer não parar a locomotiva econômica do país.
Em tempos de ditadura e cerceamento de pensamentos e ações divergentes, acaba pelas coisas da vida indo trabalhar nas metalúrgicas do ABC, mudando-se para a cidade Santo André, tornando-se profissional mecânico dos bons, respeitado em seu ofício e por sua solidariedade humana.

Homem de justiça em suas palavras e de combate as injustiças em suas ações. Se politiza cada vez mais, em torno das ideias por uma sociedade mais justa e democrática, de justiça social, contra qualquer tipo de discriminação e exploração. Aliando sua sabedoria de vida, com teoria política – de viés trabalhista marxista – em pleno momento do renascimento do sindicalismo ativo no Brasil. Do qual se torna ator político dos mais atuantes. E que apesar de todas as dificuldades de uma vida de classe popular, já no período final do chamado milagre econômico, trouxe sua amada Maria Nadete, para constituição de uma família, em que seus futuros rebentos poderiam ter melhores oportunidades na vida.

Sonho agora, fincado em terras paulistas, homem de família, mas ao mesmo tempo cabra arretado e valente. Que não se calava ante os abusos da época. Não se curvava, perante as explorações e ameaças trabalhistas, nem pela vigilância ditatorial militarista. Por segurança a sua família, e em busca de novos ares – na medida do possível, “menos” pesados – resolve continuar em busca pela edificação de seu conho em outras plagas… Não foi em São Paulo, e não seria Santo André o local em que faria germinar a sua terra prometida. O local em que iria semear os seus melhores e maiores sonhos…

Acaba vindo para Campinas, quando a cidade vivia a sua etapa de consolidação como centro econômico-tecnológico-industrial do país. Polo urbano atrativo para as grandes montadoras internacionais, das indústrias pesadas que aqui instalavam suas fábricas em galpões gigantescos, em especial entre a região do Ouro Verde até o entorno do “Aeroporto Internacional de Viracopos”. Uma nova Campinas de fato, que ali se fez emergir entre meados dos anos 1970 e por toda década de 1980. Região eminentemente popular e trabalhadora, de imigrantes de todo Brasil, mas de predominância nordestina, agregada de uma população local urbanamente precarizada que acaba deslocando-se para ali habitar, empurrada pela especulação imobiliária e interesses políticos outros, interessados em implementar a imagem de uma cidade moderna, sem pobres e com a sua população negra-mestiça, afastada das regiões e bairros centralizados [MACIEL, 1987; MARTINS, 2002; Xavier, 1996]. Sendo não por acaso, a época que se demarca geograficamente e estatisticamente a constituição da moderna periferia urbana campineira [LOPES, 1997; MARTINS, 2000; RIBEIRO, 2006]. Por muitos anos negada em sua existência, importância e significados fundamentais para aquilo que de melhor ocorre em Campinas, para aquilo que a melhor define como uma cidade de verdade, vibrante, pulsante e insolente para além das normativas racistas e arcaicas de suas elites pretensamente senhoras de tudo e de todos.

E sonhador Severino acaba por desbravar essas novas terras de conflitos e insurgências, em uma cidade de histórica luta popular de cunho antiescravagista e posteriormente trabalhista. Sendo a época, um dos polos pela luta por moradias dignas e legalizadas exercidas pelos movimentos populares de habitação no Brasil [TAUBE, 1986 – vol. I]; [TAUBE, 1986 – vol. II], como por exemplo a chamada “Assembleia do Povo” [PAOLI, 2000; [LOPES,1997]. Além de também ser uma referência na atuação política sindical democrática por melhores salários e condições de vida aos metalúrgicos e pela redemocratização da sociedade brasileira. Uma pólis de fato, que fervia em plena ebulição possibilidades e oportunidades infinitas, ao qual sonhonauta retirante, faria finalmente o seu rincão no bairro “Jardim Campo Belo”. Em região de terra vermelha, de vegetação vasta, muito semelhante aos campos verdes e arbóreo baixo de seu interior pernambucano. Área geograficamente e urbanisticamente isolada pela “Rodovia Santos Dumont (Bandeirantes)” e por um, a época, cordão verde que funcionava como forma de se buscar não revelar uma face de Campinas que não deveria ser vista. Intencionalmente ocultada para não ser reconhecida em seu existir e, portanto, assim impedida em exercer a sua voz.

Uma região que não era nem possível ser considerada urbanizada, verdadeira área rural, oriundas das partilhas confusas e conturbadas das antigas grandes fazendas locais, que foi permitida ser loteada ilegalmente, para atender a demanda da cidade em alocar a mão de obra econômica imprescindível ao seu pleno desenvolvimento, que aqui chegava. Mas sem que isso significasse de fato a sua plena inserção social e cidadã as bençãos da chamada “Princesa do Oeste”. Vão assim surgindo as primeiras habitações, que vão surgindo de formas independentes, autônomas, com suas ligações de luz clandestinas, como a iluminar em esperança contra a escuridão que teimava em acobertar em sua penumbra de invisibilidade social, aqueles primeiros habitantes, que aumentavam cada vez mais, e se faziam inserir cada vez mais as dinâmicas econômicas daquela cidade.

O “Jardim Campo Belo” é por isso uma resistência urbana, muito mais que um bairro, que não deveria se dar ou se considerar como tal. Era para ser um espaço de duração tolerada, com função prevista e após cumprir a sua necessidade ser findado, nos planos já presentes de expansão da área territorial e de atuação do aeroporto. Sendo quando muito, podendo vir a ser lembrado, talvez, citado, pelo viés histórico anacrônico dos poderosos locais, como mais uma das inúmeras áreas de favelas que insistiam em se constituir em Campinas a revelia das leis e dos bons costumes locais…

Mas Severino sabia ali ser muito mais, do que um amontoado de barracos ou de casas de alvenaria inacabada, sem valor para muitos. Sem relevo histórico, humano algum, para tantos. Mas não para ele, homem desde sempre de luta e briga, mas de sapiência e humanismo infinitos. Que sabia ser o segredo da vida a coletividade dos oprimidos contra toda e qualquer forma de exploração, a união dos melhores e mais justos ideais para dar corpo e voz aos anseios que transformam o mundo.

E assim, através de outros tantos sonhadores como Dona Lourdes, Diva, Daniel (Ziel), Justino, Édson, que buscaram lutar pela aglutinação das pessoas que ali viviam. Em um processo árduo, nem sempre fácil, de conscientização em transformar o ato de buscar (sobre)viver em se perceber e buscar seus direitos por habitar dignamente o seu espaço-lugar na cidade. Em se fazer respeitar e ter respeitado a sua condição humana, a sua condição de plena cidadania.

Tempos de novas experiencias e radicalizações políticas em que militantes sociais das mais variadas organizações e grupos atuavam conjuntamente pela construção de uma nova forma de sociedade em solo nacional. Em que as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) atuavam nas periferias das cidades através de seus agentes e pastorais auxiliando pelas melhorias de vida das populações periféricas urbanas, assim como os movimentos por moradias populares, como a já citada “Assembleia do Povo”, aliada a experiência política sindical e militante partidária que se faziam presentes a essas regiões – por sua condição de moradia da maior parte dos trabalhadores operários e subempregados do país. Período de mudança histórica que teria como resultado direto o processo de constituição e organização do bairro, a partir de ações coordenadas e articuladas, de reuniões, debates e ações políticas para tornar pública a existência e pertencimento daquela comunidade como um bairro orgânico a vida urbana da cidade. E de deveras importância por sua localização geográfica e local de moradia de mão de obra a qual a cidade não pode abrir mão para manutenção e constância de sua condição de modernidade civilizatória dentro do Brasil. Mas que teima em não legitimar e reconhecer tal situação.

O processo de convencimento da importância que o Campo Belo, e suas adjacências (“jardim Cidade Singer”, “Vila Palmeiras”, “Jardim Itaguaçu”, e “Jardim Marisa”), e principalmente, que a sua população ocupa e exerce para a cidade de Campinas, foi fator político árduo, não sem sequelas ou fraturas em sua execução, mas que se mostrou fundamental para os destinos a ser percorridos para mudar positivamente a realidade-mundo daqueles que ali habitavam, mas eram de maneira contumaz ignorados em seu existir cotidiano pelas autoridades locais. Passeatas, reinvindicações, manifestos, inserção e atuação por dentro de partidos políticos, em especial o do “Partido dos Trabalhadores”, e sindicatos locais como os ligados a construção civil e ao dos metalúrgicos. Tornando-se força política atuante e reivindicatória, incomoda aos poderes constituídos que não podia mais ser negada, e muito menos ignorada em suas exigências.

Época em final dos anos 1980, e por toda década de 1990, em que Severino atuava ativamente tanto quanto militante partidário do Partido dos Trabalhadores, quanto metalúrgico sindicalista e, sua paixão indisfarçável, militante pelo direito a permanência das comunidades edificadas em áreas de ocupação, e por melhorias urbanas constantes a elas, como era o caso do “Jardim Campo Belo”. Ao mesmo tempo que abre sua oficina de pintura para autos, de maneira totalmente informal. Para oferecer uma alternativa de serviço inexistente naquele entorno, para os carros e caminhões da vizinhança. Mas em especial visando poder prosear com os amigos, relaxar do stress diário das outras frentes políticas em que atuava. Constituindo um ponto informal de articulação política e vida comunitária, num bairro desprovido de espaços de lazer e convivência públicos. Um espaço alternativo e de informalidade política, mas que se fez seminal no sentido de dar vazão a processos de novas reivindicações e necessidades articuladas, trabalhadas em sentido coletivo, para após serem formalmente debatidas e ratificadas através de reuniões entre os habitantes locais, para a partir daí ocorrer o seu devido encaminhamento político.

E assim se fez, pouco a pouco, sempre menos rápido e urgente do que se precisa de fato, mas foi acontecendo a chegada de melhorias mesmo básicas, como a instalação de linhas de ônibus, que mesmo de circulação de hora em hora, quase sempre quebrando ou atolando ao longo de seu trajeto, representou uma mudança na possibilidade de acesso da população local ao centro, aos serviços principais, de sua cidade. Assim como um processo de ordenamento das vias do bairro, não estamos falando da chegada do asfalto, mas da implementação de guias e sarjetas, para separação real entre ruas e calçadas. O processo de uma implementação regular e mais constante de água e luz. Assim como a colocação de postes telefônicos e numeração oficial das casas pelos “Correios” que garantiram o acesso mínimo, mesmo que muito longe do ideal, de comunicação aos moradores daquela região. Abrindo assim a possibilidade de abertura de crédito nos comércios, apresentação de comprovante de endereço em entrevista de empregos e recebimentos de compras. Uma maior e concreta participação a vida urbana de qualquer cidadão, em ser reconhecido, mesmo que ainda parcialmente, como pertencente em direito à aquela pólis.

Mas apesar de todas essas boas novas, de uma vida em plena efervescência pessoal e política, vendo o semear de seus sonhos desabrochar. Severino, homem de paixão intensa e infinita, decidiu caminhar de volta ao seu sertão original. Por vezes o chamado do lar primordial é acalanto que não pode ser negado ou, talvez, pelas inquietações inerentes ao íntimo de cada pessoa. Ou quem sabe, pelos desgastes políticos e pessoais que uma vida militante acaba causando nas pessoas. Mas o fato é que ele decide levar as suas lutas por justiça social e igualdade de volta a Brejo da Madre de Deus. Era chegada a hora do bom filho, a terra mãe retornar.

Decisão nada fácil, dolorida e sofrida, mas tomada na plena consciência de que sua família, assim como as famílias de seus amigos, aqui iria continuar e florescer, mais e mais. Sempre fortalecidos enquanto uma comunidade. Com os seus rebentos agora já criados e fortes, mas, que sabia, seriam sempre bem-queridos e protegidos por Maria Danete, seu primeiro e maior amor, aquela que até ali foi sua companheira de toda vida. Mas que agora iriam caminhar por caminhos separados…

Sertanejo sonhador de futuros considerados impossíveis, viu ser semeado contra todas as lógicas e razões a edificação de um bairro, de um conjunto de vivências e humanidades que não podiam mais ser negadas em suas existências e anseios. O “Jardim Campo Belo”, longe do ideal, mas já como uma realidade orgânica não mais possível de ser escondida. Pulsante e participante a vida política da cidade, como se faz registrar nas participações do bairro nos antigos “Congressos da Cidade” ou nas (pré)planárias do “Orçamento Participativo”. Além de presença contante aos atos políticos dos mais variados por moradia, em defesa dos direitos humanos na cidade de Campinas. Sabia, intuía, que de certo modo a sua participação naquele processo estava consolidada e que era tempo de outras, de novas gerações dar continuidade a caminhada dessa luta. Em vista que ela é comunitária e não personalista, um líder sempre por exemplo, retidão e coletivismo e nunca por preciosismo ou ego.

A hora de caminhar de volta se fazia, ciclo fechado, para uma etapa de sua vida, a qual sempre carregaria a experiência da edificação coletiva de construir o sonhar e realizar o “Jardim Campo Belo” como inspiração que sempre lhe iria acalentar e aquecer sua alma, nas novas batalhas que sabia se fariam presentes, e nada fáceis, em seu novo porvir. Sem nunca deixar de, quando menos se esperava vê-lo de volta a visitar, ver como germinava a semeadura urbana que nunca deixou de considerar como o seu lar mais precioso e belo, um campo – mais que – belo na verdade… Hábito que manteria até o seu passamento indo para final dos anos 2000.

Uma história não só de Severino, mas como a de tantos que com os seus sonhos e lutas, acabaram por dar forma a um jardim urbano literalmente semeado pela esperança de melhores e mais justas vidas, não pode ser esquecida ou abandonada a sua própria sorte. Para que assim o risco das falsas e distorcidas narrativas serem as únicas vozes ouvidas sobre a “verdadeira” história de Campinas, sempre excludente, elitista e discriminatória em suas discursivas, não se tornem as vozes incontestes de eternas mentiras transformadas em verdades absolutas.

Por isso consideramos como sendo desumano e canalha, além de imperdoável, o processo de desumanização que as atuais administrações de cunho ultraconservadoras, com trejeitos e ações desavergonhadamente fascistas, na última década e meia, em sua busca por deliberadamente dificultar toda e qualquer forma de ação política pública de ampla necessidade a população local. Sempre atendendo as demandas da região, como o começo da implementação de asfalto na região do Campo Belo e seu entorno, além do início da ampliação da rede de água e esgoto, da construção de uma rede escolar local, sempre de forma precária, parcial e de uma maneira que esconde estas serem consequências das ações de lutas dos próprios moradores, mas sim como ação de “favor social” … De uma benevolência governamental, que não existe de fato. Sem deixar de destacar a perseguição política a toda e qualquer liderança que não coadune a esse projeto político de segregação e exclusão urbana que se implementa contra toda uma população.

Com o compadrio e conveniência, quando não coautoria, de representantes oriundos dessa comunidade que deixaram a muito tempo de se preocupar com o bem-comum de seus vizinhos e comunitários. Preferindo tornarem-se tal qual o seu sujeito opressor ou, ao menos, lacaio deste. Do que a ser a continuidade semeadora da herança viva de resistência e luta que deu vida, seiva e alma ao Campo Belo.
Não sendo ainda ao acaso que nesse mesmo período se faça a construção midiática dessa área da cidade como novo local de criminalidade, de região perigosa ao tecido social civilizatório de Campinas, em uma campanha sistematizada de desumanização das pessoas que ali habitam, as taxando (in)diretamente como criminosas em potencial, traficantes contumazes e delinquentes juvenis endêmicos. Uma área sem leis ou regras, que, portanto, não deve ser beneficiada de fato por recursos e ações públicas efetivas e concretas. Pois as (não)pessoas que ali vivem, não são de fatos seres-humanos, mas marginais que não merecem dividir com os verdadeiros “cidadãos de bem”, as benesses da cidade.

Essa lógica nitidamente discriminatória, de cunho racista e higienista, cabendo bem destacar, sempre presente a história de Campinas – já implementada pela elite local, para a expulsão da população negra do centro da cidade na modernização urbana implementada por Ramos de Azevedo [MONTEIRO, 2002; “Código de Posturas” de 1880 e a “Lei Número 43 de 1895], no processo de demolição, na escondida da madrugada de 19 de agosto de 1956, da Igreja do Rosário [RIBEIRO, 2023], assim como da rotulação dos bairros do São Bernardo, Vila Georgina e da Vila Rica [RIBEIRO, 2006], como regiões de periculosidade extrema, lar de bandidos e marginais – ganha agora ares neofascistas de aberta discriminação social e desrespeito aos direitos humanos mais básicos com o processo ilegal, além de humanamente imoral, de desapropriação das populações localizadas a margem da “Rodovia Miguel Melhado de Campos/SP-324”. Inclusive com ações de demolição de residências e comércios ali constituídos por décadas, em pleno processo de discussão legal sobre a validação e as salvaguardas destinadas as famílias que poderão vir a ser prejudicas pela possível implementação desse projeto [REDAÇÃO, 12/01/2024]. Que poderia ser realizado sem afetar decisoriamente a vida dessas pessoas, só através da boa vontade política – ou gestão pública de fato comprometida ao bem comum da comunidade – em desviar por metros as obras necessárias para a duplicação da pista.

Mas numa cidade em que a especulação urbana se faz como elemento chave da sua produção acumulativa exploratória de capital, esperar medida sensata e cidadã é utopia. Se fazendo por isso necessário todo suporte e apoio a luta pela existência de um bairro, que carrega em si os melhores sonhos do que Campinas foi e poderá vir a ser. Uma cidade popular, de experiências humanitárias fora da lógica normativa e pretensamente europeia-civilizadora- “branca” de uma elite arcaica e sempre chula e provinciana em seu anacronismo social e histórico.

Uma cidade de impossibilidades que aqui se encontram, imbricam, se misturam e dão formas e sentidos a experiências humanas das mais extraordinárias, passando pelos processos de rebeliões negras, além das resistências e lutas ante escravocratas de cunho popular que aqui se deram, das ações políticas dos movimentos operários de começo do século XX e durante as ditaduras de Vargas e dos militares (1964-1985), dos movimentos sociais dos mais variados recortes que tornaram Campinas um polo de referência cidadã em todo o país. Do qual a criação e concepção do “Jardim Campo Belo” é uma de suas obras, ainda em andamento, mais significantes e, por todo o seu processo, tão bonita. Não cabendo que deixemos as flores desse jardim serem podadas pelas mãos especulativas e medíocres de defensores de um futuro de não pertença, de segregação e elitização permanente em nossa cidade.

Que saibamos, em pleno festejos pelos 250 anos dessa cidade – que apesar de tanta dor e desilusão, de tanto sofrimento e descaso ao qual parece só isso nos dar – nós tantos amamos. Pois sabemos que ela é muito, mas muito mais do que a deixam transparecer, sempre sufocada e atada em poder despejar a todos a sua generosidade e amor, moradia e segurança. Mas que mesmo assim, por sua energia intrínseca, por sua alma que não consegue ser calada, acaba estimulando aos seus a busca por um outro devir mais justo, democrático e participativo. Que acaba para cá atraindo a tantos sonhadores para aqui plantar novas esperanças de realidades. Que aqui permite, agradece, semeia e faz crescer os desejos puros e verdadeiros, os sonhos mais belos de tantos e tantas que aqui despejam seu suor de vida para fertilizar uma Campinas mãe atenciosa, zelosa e de abraço infinito a todos os seus, independente de condições outras de qualquer tipo. Uma cidade no sentido exato e pleno de sua palavra, terra de cidadãos, iguais em seus deveres, mas principalmente em seus direitos.

Uma pólis plural, viva, orgânica, pulsante, vibrante, libertária, eterno sonho vivo Severino dos que tanto amam e lutam por essa jovem velha senhora chamada Campinas. Que saibamos honrar e realizar os sonhos e anseios de nossos melhores. Que suas vidas por essa caminhada que ainda continua, não tenham sido em vão. O “Jardim Campo Belo” existe, persiste, resiste e vencerá.

Pois sonhos são eternos e quando vividos em conjunto, se tornam a mais linda realidade. Que o sonho Severino continue a florescer… Ontem, hoje e sempre, “Jardim Campo Belo” Vive!

Em um aniversário de tão especial e simbólica data, acredito que não poderia haver presente melhor do que este! Parabéns, Campinas! Os que realmente te amam, te saúdam e seguem lutando pela chegada de novos e melhores tempos. Na certeza utópica de que apesar de tudo, a luta continua, e nós havemos de vencer.


Referências Bibliográficas:
BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Tratado de Sociologia do Conhecimento. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. 4. edição. Petrópolis: Editora Vozes LTDA, 1978.
CÓDIGO DE POSTURA DE 1880: – CAMPINAS. LIVRO DE REGISTRO DE CORRESPONDÊNCIAS 1872 A 1881, p. 112 verso a 133. Arquivo da Câmara Municipal de Campinas. Acervo do Centro de Memória da UNICAMP.
Lei NÚMERO 43 DE 1895: – Campinas. Regulamento da lei municipal número 43 de 27 de agosto de 1895. Acervo do Centro da Memória da UNICAMP.
LOPES, Doraci Alves. Marginais da história? O movimento dos favelados da Assembleia do Povo. Campinas: Editora Alínea, 1997.
MACIEL, Cleber da Silva. Discriminações Raciais: negros em Campinas. (1888-1921). Campinas: Editora da UNICAMP, 1987. (Coleção tempo e memória. Série Campiniana, n. 1).
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MARTINS, José Pedro Soares. Campinas Século XX: 100 anos de História. Campinas: Rede Anhanguera de Comunicação, 2000.
MONTEIRO, Ana Maria Reis de Góes. “Ramos de Azevedo e seu projeto de posturas para uma nova campinas.” Oculum Ensaios – Revista de Arquitetura e Urbanismo, campinas, n. 1, p. 24-43, janeiro, 2002.
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REDAÇÃO. Duplicação da Rodovia Miguel Melhado: entenda os problemas causados ao campo Belo. In: www.portalporque.com.br/campinas/duplicação-da-rodovia-miguel-melhado-entenda-os-problemas-causados-ao-campo-belo/ , [12/01/24], acessado em 09/06/2024.
RIBEIRO, Christian. O racismo nosso de cada dia, e o apagamento dos resquícios da Igreja do Rosário na cidade de Campinas! In: www.geledes.org.br/o-racismo-nosso-de-cada-dia-e-o-apagamento-dos-resquicios-da-igreja-do-rosario-na-cidade-de-campinas/, [01/04/2023], acessado em 08/06/2024.
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