.Por Christian Ribeiro.

A HQ “Risco” e a arte enquanto negação de dor e morte, na obra de Marcelo D’Salete!

Autor de fina sensibilidade e perspicácia, Marcelo D’Salete1 desenvolveu um conjunto artístico ao longo de sua carreira, que muito nos revela enquanto povo, enquanto sociedade. Dono de um olhar crítico e sensível, centrado a partir da valorização de sujeitos históricos marginalizados e segregados em seus direitos humanos e sociais, em especial das populações afro-brasileiras. Colocando em destaque as particularidades e historicidades destas, em meio aos nossos conjuntos, nada gentis e harmoniosos de sociabilidades – formais ou informais – mediadas e direcionadas por nosso racismo estrutural. Práxis artística que não se fazia tão comum ao universo das HQs nacionais em final dos anos 1990 e começo dos anos 2000, mesmo em suas vertentes mais socialmente politizadas.

(marcelo dsalete – reprod)

Nesse sentido, com a publicação de “Risco” (2014b), somos situados ao momento em que sua narrativa gráfica atingiu um novo patamar de excelência, pautada em uma discursiva que situa o público leitor ao contexto da história não enquanto elemento passivo ou estranho, mas como inerente ao desenvolvimento da própria história, como que presente em cada ambiente e situação retratada. Percepção essa que se faz ressaltar, a partir de cada angulação, de cada enquadramento, das disposições gráficas de cada página, em que o jogo de luz e sombra de seus desenhos nos revelam a Cidade de São Paulo em meio aos seus pixos, letreiros, cartazes e propagandas, como uma presença viva, orgânica e onipresente em todo o decorrer da história.

Dessa fase urbana de sua obra 2, situada entre os primeiros trabalhos publicados na revista “Front”, até o álbum gráfico “Encruzilhada“(2016), é em “Risco“ que a influência rap se faz melhor sentir, fluída e organicamente inserida a sua arte. No sentido da negritude ser artisticamente trabalhada enquanto elemento político, não sistêmico e antirracista, fazendo-se presente a concepção e desenvolvimento da HQ em sua estrutura e narrativa. Artisticamente retrabalhando a violência que social e historicamente ocorre a nossa volta, não em sentido de normatizá-la, romantizá-la ou enaltecê-la, mas sim de destacar sua presença ao nosso cotidiano enquanto sociedade. Sendo essa característica rap, de forma crítica cotidiana de arte, de percepção refinada das relações sociais a sua volta, que D’Salete incorpora a sua própria expressão artística3. Obra essa que não se dá enquanto alienada ou neutra ante ao mundo que se faz constituir ao seu largo, mas resultante e reflexo direto da consciência crítica de seu autor em se posicionar e não aceitar as “normalidades sociais”, as “normativas históricas e hegemônicas” que reforçam e reproduzem as nossas estruturas arcaicas-conservadoras, que naturalizam estruturalmente nossas diferenças sociais, nossos preconceitos e privilégios de raça, classe e gênero.

(risco marcelo dsalete – reprod)

“Risco” é obra em que D’Salete oferece uma imersão participativa ao leitor, como um convite para que ele fizesse parte da discursiva que se fará discorrer já quando este tem em mãos o livro impresso. Que devido ao trabalho gráfico da Editora Cachalote já coloca o processo narrativo, de sobreposições e interações perceptivas, literalmente nas mãos de quem recebe a obra, pela capa avulsa que envolve a edição, já dando uma primeira impressão ante ao cenário narrativo que se desenvolverá a trama, com seus recortes e perspectivas nada ortodoxos, obrigando o público a interagir e ampliar os sentidos perante os padrões gráficos ali expostos. Assim tendo uma percepção total da concepção artística de D’Salete, ao deixar a sobrecapa totalmente aberta, apresentando-revelando o casal de protagonistas – Doca e Eliana – que ocupam a capa dupla que se encontra por baixo, como que escondidos aos nossos olhos pela primeira camada, pela primeira superfície, aparente. Numa forma de simbolismo que parece nos dizer que há vida, com seus sonhos, sentidos e vontades, embaixo de uma aparente frieza de concreto e aço que interagem, aparentemente, de maneira amorfa e pasteurizada. Dando assim forma a uma cidade, que num primeiro momento se revela tal qual um simulacro frio e sem alma.

D’Salete trabalha sua crítica ao racismo brasileiro desenvolvendo em “Risco” uma narrativa que centrada na relação entre Doca e Eliana, nos situa em meio ao cotidiano típico de uma vida periférica – tanto urbanisticamente, quanto humanisticamente – a quais estes jovens se encontram submetidos, enquanto resultante de um processo histórico de exclusão social e racial que se perpetua de geração em geração, por séculos em nosso país. Por isso, é uma história ficcional não tão ficcional, no sentido de ser baseada em fatos e fatores, que conjunturalmente se fazem presentes e influenciam diretamente as nossas relações sociais formais e informais que ocorrem e fluem em nossos processos cotidianos de sociabilidades. Sendo essa uma premissa da fase urbana da obra de D’Salete que se faz inerente em toda a sua carreira, o dele ser um intérprete do cotidiano, um artesão em usar e retrabalhar as características e particularidades de nosso dia a dia e que para muitos passam totalmente despercebidos. Aquilo que para tantos nada diz ou nada significa, para ele são os meandros, os pormenores que tudo pode nos revelar4.

O que nos explica termos em “Risco” uma história que mistura amor, aventura, policial, suspense, terror e fábula, que somados nos apresentam uma narrativa original enquanto obra socialmente crítica, sem deixar de ser também lúdica. Até em sua forma de nos pautar uma realidade histórica-contemporânea que tradicionalmente vemos (re)negada em sua existência, em sua ocorrência, em prol de uma imagética racista e elitista de que vivemos em uma sociedade harmoniosa, socialmente sem conflitos ou máculas. Hipocrisia social que D’Salete desmascara logo nas primeiras páginas da sua narrativa gráfica, quando temos a apresentação de Doca ao leitor, ao mesmo tempo que nos é também situado o personagem Digo, que será o seu antagonista, ou melhor, o seu alter ego na história. Como que representando dois brasis que existem em um mesmo território, em um mesmo espaço-tempo. Mas que ocupam e representam lugares socialmente diversos, no sentido de antagônicos e conflitivos. Longe de maniqueísmos que tal estrutura conceitual poderia acarretar, de narrativa rasa que poderia advir, temos a base do trabalho artístico de D’Salete em mostrar a dualidade social brasileira, refletida em nossa estrutura racista de sociedade, com relações de convivência e de poder oriundas de nossa origem senhorial escravocrata. Em que para um, Doca, resta as margens, as franjas do status quo para exercer as artimanhas de sua sobrevivência, sempre com as migalhas do sistema, lembrado constantemente de que não é bem-vindo, nem bem-quisto em nossa sociedade, sempre o “outro”, o modelo de “não humanidade”, o de “periculosidade”, a ser vigiado, controlado e exterminado para garantir a segurança dos socialmente hegemônicos e modelos de “boa cidadania”. Enquanto, Digo representa aquele que sabe possuir todos os privilégios, além de todos os direitos, como que tendo o mundo aos seus pés, incapaz de assumir suas próprias falhas e erros, na certeza de que sempre ficará protegido, bem cuidado e a salvo de qualquer agrura que possa vir se interpor ao seu caminho.

Assim nos situando, em meio a essa dualidade dialética entre os personagens, de que vivemos em uma sociedade de característica estamental em pleno século de modernidade capitalista periférica (pós-moderna) do século XXI. O que fica patente quando os policiais militares que aprecem por toda a obra, agem como capitães do mato contemporâneos, em sua sanha em perseguir, torturar e matar todos os Docas, a fim de proteger o Sistema e a todos os Digos, independente da realidade dos fatos, das verdades que se apresentam e são ignoradas de acordo com os interesses e perspectivas as quais optam em representar e defender. É o Estado situado como instrumento de poder e controle, deturpado em sua função de provedor universal de direitos, de fomentador e gerenciador da coisa pública, para instrumento de privilégios de alguns sobre muitos, de agente de dor e morte aos quais não considera dignos de existência. Sociedade de extermínio que pulsa e se manifesta por debaixo de nossa máscara de cordialidade social, que é posta em meio a narrativa de D’Salete como exemplo dos privilégios de poder moldado na relação entre raça e classe social típicos da sociedade brasileira.

Privilégios esses que levam Doca a ser colocado entre vida ou morte, por uma situação em que nada tinha a ver, numa cena limite que possibilitou ao autor enveredar por possibilidades narrativas que elevam a obra uma poética sem limites. Desde os caminhos que desenvolvem um final trágico e “realista” a obra – em vista aos processos de violência e assassinatos realizados pelas forças de segurança estatais ante as populações negras – em que surge personagem que reflete a indiferença de nossas elites, dos “cidadãos de bem” ante aos males, as dores e agruras que estão socialmente expostos os por eles considerados enquanto “inferiores”, desprovidos de qualquer valor, de qualquer aspecto de humanidade. Além de também destacar, nesse mesmo recorte narrativo, o quanto tal situação se faz alimentar e reproduzir, enquanto socialmente normativa, naturalizada em seu absurdo, pela grande mídia, sempre interessada em defender os interesses e privilégios dos seus, em vez de defender os interesses e direitos da sociedade como um todo. Para dessa forma evidenciar que vivermos em uma máquina de moer gente, sugadora de almas, sempre ávida por mais e mais Docas para lhe manter ativa, para manter funcionando as suas engrenagens de morte!

E é exatamente para romper essa lógica, essa perspectiva, que trabalhamos com a percepção de que D’Salete, demarca a sua postura de confrontação ante nossa normativa social, ante aos absurdos que acabamos por nos conformar e habituar enquanto normais, ao buscar desenvolver um outro caminho narrativo a sua trama. Para desse modo rompera narrativa apresentada até então, literalmente alterando aquilo que seria o desfecho natural da história. Num processo de quebra da chamada “quarta parede”5 em que coloca sua voz-pensamento enquanto elemento reflexivo da história, para demarcar esse momento de inflexão da HQ. Ao situar o seu não aceite ante os destinos de morte que se reservam aos jovens como Doca. Um autor em plena liberdade e domínio de sua potência criativa, em não se submeter, aos que querem mediocridade, aos que querem sujeição ante nossa normalidade social e histórica. Ao remeter a jura de amor realizada entre Doca e Eliana, aparentemente de maneira despretensiosa, no começo da história, temos a incorporação do “amor” enquanto conceito que se fará fundamental ao término da obra.

Para os que esperam dor e morte enquanto desfecho para Doca, temos a construção de um outro caminho, de uma outra perspectiva, em que a promessa de vida entre o casal se faz superior a tudo, e a qualquer situação. Tendo a figura de Eliana para muito além do par romântico de Doca, mas sim como uma representação simbólica da mulher negra enquanto eixo existencial primordial, de ponderação e segurança das populações afro-brasileiras ao longo dos séculos, de simbolização da esperança, da perseverança como certeza de que apesar de tudo, novos caminhos serão construídos e apesar das sombras e escuridão parecerem eternas, sempre chega a hora de um novo raiar. Alvorecer de um novo dia, que se faz revelar ao público leitor quando – após toda uma travessia social, psicológica e territorial, retratada em cortes cinematográficos desenhados por D’Salete que percorre as vias urbanas da cidade – Doca finalmente reencontra Eliana, contra todas as impossibilidades e estatísticas que enfrentou por toda noite/madrugada/vida, para ser agraciado com o despontar da aurora de novos tempos, protegido e acalentado nos braços de sua amada. Como que D’Salete deixando público que em sua arte, pelo menos ali, naquela história, o amor vencerá e não há lugar, espaço para a dor ou a tristeza, não em sentindo alienante, mas sim em plena práxis revolucionária que tal manifestação artística carrega e simboliza. De que em “Risco”, o jovem negro não se fará tombar inerte, como corpo frio a confirmar as estatísticas do Brasil como um país que mais mata seus jovens, em especial – e não por acaso – sua população afrodescendente. Entre a fábula e o romance, temos um autor demarcando sua obra como uma manifestação artística e política, como que um compromisso em não se conformar com as agruras e injustiças do mundo. Assim fazendo valer o legado de lutas, anseios, sonhos e historicidades de seus antepassados.

Ao mesmo tempo em que também nos faz manifestar sua compreensão de que histórias em quadrinhos nunca são meramente sem sentido ou “simples” historietas pueris, uma somatória de imagens e texto visando meramente diversão pueril ou escapismo puro e simples. Pois como toda construção humana, ela se dá em meio a um contexto histórico, social e cultural que influenciou a sua constituição, que direta ou indiretamente, acabam presentes na elaboração e desenvolvimento do que virá a ser uma obra acabada em si, ou que poderá vir a ser parte de todo um conjunto artístico caraterístico de determinado autor ou autora.

Não existindo, portanto, “quadrinhos sem política”, pois toda forma de arte humana é reflexo e dialoga com as relações sociais e culturais que circundam a sua volta. Podendo haver uma não vontade, ou não interesse – o que é legítimo – de um autor em querer dar expressividade ideológica a sua obra ou fazer dela expressão contextualizada (laudatória ou crítica) e explícita acerca de determinada questão social ou fenômeno político. Mas querer imputar que tal forma de expressão humana é essencialmente neutra e apolítica é a própria negação de sua condição de arte. O que fica evidente, não só nessa HQ, como em todo o conjunto de sua obra, de que esse não é o caso de D’Salete. Senhor de uma arte para além de conformismos e alienações, radical em seu sentido mais amplo e inspirador, verdadeiro refrigério as dores de nossas almas, em meio a tanta covardia e silêncio, quando não conivência, ante aos tempos sombrios e desesperadores ao qual vivemos ultimamente!

Notas

1 Quadrinista, ilustrador, roteirista e professor de arte, nascido na cidade de São Paulo em 1979, é uma das principais referências dos quadrinhos brasileiros desde o início de sua carreira, no começo dos anos 2000, para desde então constituir uma sólida trajetória profissional, sendo prestigiado e laureado tanto nacional, quanto internacionalmente.

2 Que posteriormente seria seguida pelos seus trabalhos de cunho histórico – Angola Janga, (2017) e Cumbe (2014a) – relacionados aos processos de resistências políticas e culturais quilombolas e da importância destes fenômenos sociais tanto aos processos de formação, quanto de modernização da sociedade brasileira. Além de situá-los enquanto exemplos de práxis de lutas antirracistas e de negritudes em nosso país.

3 No sentido do rap, assim como a cultura hip-hop em geral, ser reconhecida pelo autor como elemento chave tanto em sua formação artística, como a sua própria percepção e desenvolvimento de consciência racial-social enquanto homem negro em meio a sociedade brasileira.

4 Convém salientar que tal história foi primeira publicada em 2014, num período histórico de aumento de renda e conquistas de direitos sociais obtidos durante os governos federais petistas de Lula (2003-2006; 2007-2011) e Dilma Rousseff (2011/2014; 2015/2016), que para muitos sinalizava o fim das questões sociais brasileiras. Diferente da hegemonia conservadora e fascista, que naturaliza todas as formas de discriminações e preconceitos a qual hoje nos encontramos submetidos. O que para nós revela a perspicácia crítica-artística de D’Salete e o quanto tal fenômeno histórico-social como o racismo, se mostra enquanto endêmico as entranhas de nossa sociedade, independente dos fatores históricos, políticos e econômicos que possam estar em vigência no momento.

5 Como se a expressão artística encenada ou representada de maneira tridimensional, fosse quebrada e houvesse uma troca direta de diferentes percepções e perspectivas sobre a obra em andamento, entre os atores envolvidos com o público que os assistem. Não havendo dessa forma mais distinção entre ficção e realidade, completando e assim radicalizando, nesse caso, a imersão proposta pelo autor já nas primeiras páginas da história, através de sua capa avulsa.


Referências Bibliográficas:
D’SALETE, Marcelo. Angola Janga. São Paulo: Editora Veneta, 2017.
D’SAL|ETE, Marcelo. Encruzilhadas. São Paulo: Editora Veneta, 2016.
D’SALETE, Marcelo. Cumbe. São Paulo: Editora Veneta, 2014a.
D’SALETE, Marcelo. Risco. São Paulo: Cachalote Editora, 2014b.


Christian Ribeiro mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.