.Por Ricardo Corrêa.

A verdade é aquilo que está fora da sua cabeça.

(Amílcar Cabral)

Nós, moradores de territórios marginalizados, enfrentamos inúmeras adversidades resultantes da ausência do Estado na produção de políticas públicas que nos ofertem sobrevivência digna. E como reflexo, acostumamo-nos a comemorar com certo entusiasmo as pequenas conquistas pessoais. Celebramos a promoção no emprego, a publicação de artigo na imprensa, o curso concluído ou ingresso na universidade, a reforma da residência, a aquisição de algum  bem material etc. Às vezes nem é sobre nós, comemoramos também as superações das pessoas que estão na mesma condição social. E acho importante que façamos isso, pois cultiva a esperança e fortalece a autoestima de um povo que se reinventa para sobreviver neste mundo abundante de injustiça social, como disse o intelectual Milton Santos (2000) “(…) os pobres não se entregam. Eles descobrem cada dia formas inéditas de trabalho e de luta”.

(foto anja schindler – pbl)

No entanto, as conquistas não são eventos comuns, muitas pessoas convivem somente com derrotas e sofrimentos. Por essa razão, critico os que colocam as experiências individuais como universais e representativas da população que sobrevive no mesmo espaço geográfico.

De maneira mais específica, refiro-me aos artistas, militantes e políticos que lançam mão do slogan “A favela venceu” nas ocasiões em que os moradores da periferia conquistam algo material ou simbólico, ou situações que a própria cultura marginalizada ocupa espaços privilegiados. Eu vejo nessa manifestação o mero ajuste ao ideário neoliberal, desconectado da realidade concreta da massa negra e pobre. É o flerte com a meritocracia, pois como pano de fundo considera o esforço a matéria-prima do sucesso, homogeniza as individualidades e abandona as críticas que deveriam ser feitas ao Estado por não garantir os direitos fundamentais da população.

Decerto, se a sociedade não fosse estruturalmente racista, possivelmente, nem favelas existiriam neste país, já que os negros são a maioria nesses lugares. Os disseminadores do slogan, simplesmente, desconsideram as dores das mães, familiares e amigos de pessoas que foram assassinadas pelas ações do poder público em nome do combate às drogas. Urge que sejamos críticos diante disso, e questionemos “como assim a favela venceu?” se o que vemos é a manutenção e aumento da violência contra os negros e pobres.

Veja só, por conta da desigualdade social as favelas estão se multiplicando no Brasil. De acordo com a estimativa do IBGE, o total de “aglomerados subnormais” – favelas, palafitas, etc. – saiu de 6.329 em 323 municípios para 13.151 em 734 cidades de 2010 a 2019.1 E mais, pesquisa II Vigisan (Inquérito Nacional Sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil) divulgou que há 33,1 milhões de brasileiros passando fome no Brasil.2 Isso é estarrecedor! Não restam dúvidas de que os famintos estão espalhados nas favelas, e outros espaços marginalizados; atualmente, há um aumento exponencial de pessoas morando em barracas, sob viadutos, nas praças e calçadas situadas nos centros das cidades. E o que me deixa indignado é constatar que a reflexão da escritora Carolina Maria de Jesus, nos anos 60, continua atual “O maior espetáculo para o pobre da atualidade é ter o que comer em casa”.

Devemos rechaçar pensamentos individualistas massificados, principalmente, por quem o sistema concedeu migalhas e oportunidade de participação em espaços privilegiados. A realidade violenta exige a construção de ações concretas e  discursos radicalizados contra o sistema que oprime a população. Nesse aspecto, Milton Santos (1996/1997) escreveu que é fundamental “um discurso cientificamente elaborado, que não pode ser um discurso choramingas, nem um discurso de pura emoção. A organização é também indispensável, como um dado multiplicador das forças limitadas”. Conversemos com as pessoas e mostremos que no capitalismo a mobilidade social dos pobres é descendente, e os que ascendem são apenas exceções confirmando a regra. Mas, se mesmo assim elas insistirem na reprodução do slogan, pergunte se os que andam revirando lixo, encarando a “fila do osso”, e os familiares que perderam seus entes queridos, na “guerra às drogas”, compartilham da mesma opinião.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CABRAL, Amílcar. Unidade e Luta I. A Arma da Teoria. Textos coordenados por Mário Pinto de Andrade, Lisboa: Seara Nova, 1978.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014.

SANTOS, Milton. Cidadanias mutiladas. In: LERNER, Julio (Ed.). O preconceito. São Paulo: IMESP, 1996/1997, p. 133-144.

SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Record, 2000.

1Aumento no número de favelas no Brasil é reflexo da desigualdade crescente, afirma Denise Morado

Disponível em: < https://ufmg.br/comunicacao/noticias/aumento-do-numero-de-favelas-no-brasil-e-reflexo-da-desigualdade-crescente-afirma-denise-morado>. Acesso em: 14 jun. 22

2 Inquérito Nacional Sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil

Disponível em: < https://static.poder360.com.br/2022/06/seguranca-alimentar-covid-8jun-2022.pdf>. Acesso em: 14 jun. 22