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.Por Gustavo de Almeida Nogueira.

Em filme disponível online, Zé Celso e Monique Gardenberg nos convidam a revermos nossa velha relação com Godot.

É provável que nenhum escritor do século passado tenha lidado tão sistematicamente com a ideia de confinamento em seus mais variados aspectos quanto o irlandês Samuel Beckett (1906-1989). Autor de obras conhecidas como antiteatro e antirromance, Beckett reduziu os mais diversos gêneros literários a seu núcleo mínimo, eliminando não somente os referenciais de espaço, mas também de tempo, de identidade de narradores e personagens, de ações narrativas e dramáticas. Não foi nenhuma surpresa, portanto, que ao longo da pandemia as encenações e adaptações de suas peças e textos tenham pululado por todo o mundo.

Entre nós, não foi diferente. A novela “Primeiro Amor”, escrita poucos anos antes de “Esperando Godot”, teve seu narrador-narrado encenado por Marat Descartes, com direção da Georgette Fade, transmitida pelo canal do SESC São Paulo no Youtube. Também integrado à programação do #EmCasaComSesc, Matteo Bonfitto e Yoshi Oida adaptaram o “Fim de Partida” para uma versão filmada. Da trupe do Teatro Oficina, Renato Borghi dirigiu e atuou em conjunto com Elcio Seixas o “Fim de jogo”, peça que já havia encenado em seu próprio apartamento. Fiquemos por esses exemplos, pois a lista é de fato inesgotável.

O filme-peça “Esperando Godot”, acessível para compra na plataforma Sympla e disponível até o último dia desse ano, vem em um momento de boas notícias a respeito do controle da pandemia, com o primeiro dia sem contagem de óbitos no estado de São Paulo (8/11/2021), e aparece como uma coroação final dessa série de produções de Beckett em confinamento. A empreitada não deixa de ser uma continuação da exploração da linguagem fílmica que o Teatro Oficina já desenvolve ao vivo há mais de década em suas encenações no palco. Dessa vez, Zé Celso divide a direção com a experiente Monique Gardenberg, de Ó pai, ó (2007) e Paraíso Perdido (2018). A célebre dupla de vagabundos beckettianos é interpretada por Guilherme Calzavara, que encarna o reflexivo Vladimir, e Marcelo Drummond, no papel de Estragão. O servo Lucky fica a cargo de Danilo Grangheia e Pascoal da Conceição nos presenteia com um brilhante Pozzo do agronegócio brasileiro.

O resumo do enredo é o mesmo da montagem de estreia que causou frisson no Théâtre Babylone de Paris já há quase setenta anos: em uma estrada no campo, ao lado de uma árvore, dois vagabundos aguardam a chegada de um senhor do qual tudo ignoram, exceto por seu nome, Godot. Em meio ao esforço criativo para passar o tempo, encontram Pozzo, um dono de terras que traz amarrado a uma corda seu servo, Lucky. Dividida em dois atos, trata-se de uma peça em que “nada acontece, duas vezes”, na formulação precisa da crítica irlandesa Vivian Mercier.

Com propósitos rítmicos e estéticos coerentes, a montagem do Teatro Oficina confere dinamismo a essa ausência de ação dramática da peça, acompanhando a liberdade das pequenas e grandes alterações feitas por uma adaptação corajosa do texto original. Interpretado com uma prosódia inconfundivelmente nacional pelo grupo de atores, a criativa, mas também cuidadosa tradução de Catherine Hirsch e Verônica Tamaoki nos traz um Beckett não somente brasileiríssimo, mas dolorosamente atual e nosso. Nada disso impede o humor escrachado de fluir aqui e ali pelas frestas do trágico, quase sempre assumindo tons de resistência a um conservadorismo sisudo.

É assim, por exemplo, que ao se depararem com o impedimento de se abraçarem — medindo distâncias de segurança sanitária — o par Didi e Gogo é tomado por um súbito desejo de beijarem-se que desemboca em uma masturbação com direito a generosos cuspes lubrificantes, de uma obscenidade suja e cômica que nossa literatura compartilha bem com a irlandesa. Outras atualizações da encenação têm caráter social mais imediato. A cesta de alimentos de Lucky — chamado a certa altura de “indígena” por esse Pozzo do agronegócio — torna-se uma mochila reconhecível dos aplicativos de delivery.

Um dos pontos altos das modificações do texto original vem quando esse trabalhador informal e precarizado recebe ordens para pensar, dando início ao célebre número de Lucky declamando desarticuladamente em voz alta seus pensamentos confusos. As belíssimas homenagens, que passam por Grande Otelo, Luis Gustavo e Cacilda Becker, são tragicamente emaranhadas na cacofonia de um discurso que se perde na busca impossível de recolher todos os cacos perdidos em tempos já antigos e nos tempos pandêmicos atuais. É certamente uma das atualizações mais líricas e comoventes do filme-peça. Outras, ainda, chegam a sugerir novas camadas de suspeitas quanto àquele que esperamos. O menino que vem trazer notícias de Godot fala seu beabá da submissão em inglês: “yes, sir”, “no, sir” e “I don’t know, sir”, espelhando de modo conciso e tragicômico o ridículo de nossa posição internacional nos últimos anos.

A singularidade radical dessa montagem se encontra em duas alterações centrais, louvavelmente arriscadas. A primeira trata de localizar a encenação. No entorno, avistamos construções do bairro do Bexiga e, ao fundo do teatro de Lina Bo Bardi, a circulação de carros e transeuntes transformam integralmente o significado do filme-peça. Da distância de nossas casas, o que assistimos é uma encenação do Teatro Oficina sendo ignorada pela movimentação do cotidiano próximo a ela. O abandono no meio do nada das personagens de Beckett torna-se no Brasil de Bolsonaro uma indiferença ao teatro. Assim, os pedidos de mendicância de Didi e Gogo a Pozzo ganham sentido de denúncia de um apagão cultural promovido por uma secretaria que começou com um forte nome do teatro, Roberto Alvim, marcado pelo escândalo do empréstimo da mise-en-scène nazista de Joseph Goebbels, e segue em desastre na figura de Mário Frias. Há também cenas de enaltecimento das artes. A certa altura, o Pozzo já cego do segundo ato pergunta aos personagens-atores se eles não estariam todos em um teatro. Na tentativa de descrever a construção projetada por Lina Bo Bardi em 1984, Didi arremata: não há nada igual. Em 2015, o edifício do Teatro Oficina foi eleito o melhor do mundo pelo jornal britânico Observer, a publicação de domingo do Guardian. O espaço reabriu recentemente suas portas para o público com o espetáculo “PARANOIA”.

Há ainda uma última alteração que Zé Celso e Monique Gardenberg nos prepararam. Adaptando a peça que ficou famosa por seu anticlímax inesperado, o Teatro Oficina resolveu virar a mesa para cima de Beckett nos instantes finais de seu filme — mas já avisamos que de nada adianta entrar em conjecturas otimistas ou pessimistas sobre Godot. É importante lembrar que essa espera nunca teve a ver com uma afirmação niilista da eterna condição humana, mas refere-se antes de tudo ao estado de coisas marcadamente histórico do pós-guerra no qual reconhecemo-nos tragicamente a cada montagem encenada no mais diversos países do capitalismo global. Essa perenidade certamente não é culpa do autor da peça. Tampouco aqueles que exigem o rigor de padronização do produto que encomendam, tal qual exposto no anúncio de um aplicativo, poderão acusar as alterações do Teatro Oficina de uma liberdade irresponsável. A história pede passagem; o filme-peça de Zé Celso e Monique Gardenberg aponta a urgência em abri-la.

Gustavo de Almeida Nogueira é doutorando do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP), tendo a obra de Samuel Beckett como objeto de estudo desde seu mestrado, realizado na mesma instituição. Ministrou cursos de extensão na FFLCH-USP sobre a literatura francesa do pós-guerra e tem artigos publicados sobre Samuel Beckett e Mário de Andrade.

Link para o acesso ao filme pela plataforma Sympla.

Ficha Técnica:

ESPERANDO GODOT

Um filme de

José Celso Martinez Corrêa e Monique Gardenberg

Dramaturgia

Samuel Beckett

Tradução

Catherine Hirsch

Verônica Tamaoki

Elenco

Vladimir – Guilherme Calzavara

Estragão – Marcelo Drummond

Pozzo – Pascoal da Conceição

Lucky – Danilo Grangheia

Menino – Raphael Moreira

Participações especiais

Iaô – Otto Barros

Ogã – Ito Alves

Enfermeira – Wendy Martins

Direção de Fotografia

Gustavo Hadba

Iluminação

Beto Bruel

Edição

Ana Paula Carvalho

Direção de Arte e Arquitetura Cênica

Marília Gallmeister e Marcelo X

Figurino, Maquiagem e Visagismo

Sonia Ushiyama

Trilha Sonora e Direção Musical

Felipe Botelho

Percussão

Ito Alves

Conselheira Poeta

Catherine Hirsch

Assistente de Direção

Beto Eiras (Zé Celso)

Arlindo Hartz (Monique Gardenberg)