.Por Marcelo Mattos.
“Não havia mais ninguém lá. Dera tangolomângolo na tribo Tapanhumas eos filhos dela se acabaram de um em um. Não havia mais ninguém lá”.(Mario de Andrade, in Macunaíma).
…quando criança, me imaginava sendo devorado pelo mar furioso, numa imensa arrebentação de espumas, o remo rompia cegamente a linha d´água num golpe seco, fincado sobre o vau bordado da canoa; momentaneamente pensava que era apenas uma significação contingente de um curumim caiçara, sem perceber que já estava por todo afogado em minha herança Guarany, envolta em sopro e névoa.
Jayde Esbell vive! – Na noite do último dia 2 de novembro soube da morte do artista plástico e ativista indígena Jaider Esbell, 41 anos, encontrado sem vida numa pousada em Juquehy, litoral norte de São Paulo. Fiquei consternado: primeiramente pelo pesar que representa o suicídio indígena e o sentimento de perda de um jovem artista tão brilhante, inovador e especial. Ainda amparado pela tristeza, a primeira imagem que me veio de Jaider foi a beleza da sua presença no extraordinário documentário “Por onde anda Makunaíma?”, do diretor Rodrigo Séllos.
O filme se concentra na encarnação modernista do personagem de Mario de Andrade e conduz o espectador ao seu mito de origem, “Makunaíma”, que salta dos escritos e registros do etnólogo alemão Koch-Grünberg, feitos em 1910, durante a convivência com povos indígenas da tríplice fronteira Brasil-Venezuela-Guiana onde está localizado o Monte Roraima, também chamada “tepuy” na línguagem indígena Macuxi, de grande significado espiritual, sendo referido como a “Casa de Macunaíma”, ao largo dos rios Uraricoera e Waikás. Jaider Esbell era um guerreiro da nação Macuxi, da região hoje demarcada como a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, entre as cabeceiras dos rios Branco e Rupununi.
As maiores taxas de suicídios são dos povos indígenas – Em seu Boletim Epidemiológico (set/2020) o Ministério da Saúde publicou os dados referentes ao suicídio da população indígena no Brasil durante os anos de 2015 a 2018. O suicídio, na definição da pasta, é um alarmante problema de saúde pública para a população. Os povos indígenas possuem maior risco de morte por suicídio, representando uma taxa de 17,5 óbitos a cada 100 mil habitantes.
Segundo o relatório 2018 do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, nos últimos 16 anos foram registrados 782 suicídios nas comunidades indígenas brasileiras, o que significa uma “variação” de 30 a 73 casos por ano. Informa, ainda, que o quadro de suicídios entre os Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul não se alterou em quatro décadas, sugerindo que esse fenômeno não é restrito apenas a essas comunidades, já que em 2016 houve 30 casos de suicídios no Alto Solimões.
Walelasoetxeige, Txai Suruí – A 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP26), em Glasgow/Escócia, recebeu 40 lideranças indígenas brasileiras, o maior grupo da história do evento, com destaque para o discurso da jovem ativista Txai Surui, coordenadora do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia, denunciando o desmatamento e invasão das terras indígenas pela grilagem oficial de garimpeiros, madeireiros e do agronegócio, o genocídio indígena e o “ecocídio”.
As lideranças indígenas apresentaram à COP 26 a “Carta de Tarumã”, uma declaração dos povos da Amazônia frente às mudanças climáticas, explicitando que “não há solução para crise climática sem nós”, destacando que está diretamente ligada à exploração dos povos e das terras indígenas da Amazônia e que a meta de emissões apresentada pelo governo Bolsonaro é um “compromisso vazio”.
O genocídio indígena – Os assassinatos de indígenas cresceram 61% em 2020, segundo o Conselho Missionário Indigenista – Cimi, onde as maiores ameaças de ataques à territórios e indígenas recaem sobre as nações Yanomami, Uru-Eu-Wau-Wau e Mundurucu,de Roraima (RO). Há uma verdadeira escalada de conflitos, em razão do aumento das invasões nas terras indígenas, ameaçando gravemente a vida, a integridade física e a saúde dos povos indígenas, além de danos ao meio ambiente. Nas terras indígenas Yanomami e Mundurucu, a situação é ainda mais grave: há risco iminente de massacres de indígenas, de genocídios.
Os invasores (madeireiros, mineradores, garimpeiros e agronegócio) dia-a-dia estão ampliando as áreas ocupadas, atacando, assassinando e ameaçando indígenas, contaminando-os com Covid-19 e malária, poluindo seu território com mercúrio e desmatando a Floresta Amazônica. A comunidade de Korekorema e o relatório de viagem de um grupo de Ye’kwana, de junho de 2020, informam que nas margens do rio Uraricoera (RO), desde o início de abril, um grupo de 50 garimpeiros havia montado um acampamento, levantado barracões e preparado balsas de raspa terra nas proximidades da comunidade, rio acima.
O relatório registra, entre outros, a cobrança de pedágio no porto de Arame, a intensa circulação de embarcações e aeronaves, a degradação florestal e poluição das águas e ameaças à segurança para a circulação dos indígenas em sua própria terra. Em 14 de junho de 2020, duas lideranças Yanomami foram assassinadas na comunidade Xaruna, Serra do Parima (Alto Alegre), devido a conflito com garimpeiros.
Em junho de 2020, a agência britânica Reuters em “The threatened tribe”, publicou imagens impressionantes da destruição do garimpo na Terra Indígena Yanomami. (O link pode ser encontrado em https://graphics.reuters.com/BRAZIL-INDIGENOUS/MINING/rlgvdllonvo/index.html) .
OS YANOMAMI (RO) – Desmatamento: Segundo o PRODES/INPE (Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite), em 2019 foi a maior taxa de desmatamento nas terras Yanomami nos últimos 13 anos (totalizando 3.463 hectares), acumulando mais de 30 mil hectares em desmatamentos. Em 2020, a terra indígena Yanomami ainda registrou 216 hectares desmatados e foi a vigésima primeira mais devastada no país nesse ano.
Os dados mensais do sistema DETER (Sistema de Detecção de Desmatamento em tempo Real) revelam que as invasões e desmatamentos continuam após o último período de medição do sistema PRODES, com desmatamento, degradação florestal, mineração e queimadas desde o início da pandemia em 2020.
O Garimpo – Os garimpos de ouro representam a principal fonte de contaminação ambiental por mercúrio na Amazônia. O metilmercúrio é reconhecido como uma das apresentações mais tóxicas do mercúrio afetando o sistema nervoso central, urinário, cardiovascular entre outros e, particularmente, as mulheres em idade reprodutiva, fetos e crianças menores de dois anos. A contaminação por metilmercúrio em gestantes é capaz atingir o cérebro do feto ainda em formação, causando danos irreversíveis, incluindo perda de audição, déficit cognitivo, retardo no desenvolvimento e malformação congênita, em crianças expostas durante o período intrauterino.
Na Terra Indígena Yanomami (RO), a mineração de ouro começou a se estabelecer a partir da década de 1980, ocasionando além de contaminação ambiental, a desestruturação de inúmeras aldeias, o esgotamento de recursos naturais da fauna e da flora, surtos de malária marcados por alta letalidade, entre outros agravos e problemas sociais que incluem alcoolismo, prostituição e toda sorte de delitos.
O conjunto de dados e notícias mostra um cenário devastador que se assemelha à tragédia da invasão garimpeira, denominada “corrida do ouro”, iniciada em 1987. Naquele momento, a transmissão de doenças, como a malária, e a fome assolaram os Yanomamis, chegando a haver relatos de que entre 15 e 20% da população fora exterminada nesse período.
O garimpo ilegal avançou 30% nas terras Yanomami em 2020, segundo relatório “Cicatrizes na Floresta” das organizações HAY (Hutukara Associação Yanomami) e Seduume (Associação Wanasseduume Ye’kwana), apontando o adensamento da atividade ilegal como a precarização no atendimento à saúde e desvio de medicamentos reservados aos indígenas, onde os garimpeiros têm trocado ouro por vacinas destinadas à população indígena.
Esse garimpo que se instala atualmente em terras indígenas, além de ilegal, é uma atividade econômica que conta com maquinário milionário e depende de logística de alto custo com fortes ligações com o tráfico de armas e de drogas que já controlam o garimpo dentro das terras Yanomami.
Hoje, os Yanomami enfrentam uma situação sanitária desesperadora, que inclui pandemias sobrepostas de Covid-19 e de malária, contaminação endêmica por mercúrio oriunda do garimpo e quadros nutricionais associados à insegurança alimentar, com alta prevalência de anemia e desnutrição infantil. Trata-se de contexto terrível, que em muito lembra a tragédia que assolou os Yanomami na corrida do ouro dos anos 1980, quando, em regiões com intensa presença de garimpo, comunidades inteiras desapareceram ou tiveram sua estrutura demográfica comprometida.
A Malária – Se no período de 2005 a 2014 foram registrados 41.689 casos de malária no território Yanomami, somente no ano de 2019 foram notificados 17.981 casos; em 2020, foram 19.030 e; até maio de 2021, já haviam sido registrados 5.159 casos. Considerando que a população no Distrito Sanitário Yanomami está estimada, em 2021, pela Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), em 28.141 pessoas, são cabíveis as estimativas de que a malária afetou aproximadamente 64% da população em 2019 e 67% em 2020, se não considerarmos reinfecções no mesmo indivíduo. Entre 2019 e 2020 houve um aumento de 15.2% dos casos de malária em área indígena impulsionados largamente por um aumento de 56.2% dos casos associados ao garimpo. Este aumento é ainda observado nos primeiros meses de 2021.
Os Uru-Eu-Wau-Wau (RO) – Desmatamento: O desmatamento e o roubo de madeira no território dos Uru-Eu-Wau-Wau vêm sofrendo intensa ação de invasores com um forte aumento nas taxas de destruição em seu território desde 2014, conforme dados do PRODES. Em 2020 foram registrados 331,4 hectares desmatados, a décima quarta terra indígena mais devastada no país em 2020, acumulando mais de 20 mil hectares. O período entre agosto de 2020 a março de 2021 já registrou 128,6 hectares em novos desmatamentos.
As terras indígenas levantadas em RO têm alta de 583% no desmatamento (setembro/2021), segundo o Sistema de Alerta de Desmatamento em Terras Indígenas, em sua maior parte acontecendo no norte da terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau, com perda de 83 hectares do seu território.
De abril a dezembro/2020, foram 2.295 hectares de desmatamento distribuídos em 15 aldeias indígenas. A terra Piripkura (MT) foi a mais desmatada, com 962 hectares, seguida da terra Araribóia (MA), com 375 hectares e os Uru-Eu-Wau-Wau (RO). Em janeiro/2021, o desmatamento seguiu nessas três áreas indígenas mais ameaçadas, sendo identificados 375 hectares na terra Piripkura, 31 hectares na terra Araribóia e 10 hectares na terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau.Segundo o Ministério Público Federal (MPF), a terra indígena Uru-Eu-Wau-Wau é o segundo território indígena com mais propriedades e imóveis irregulares cadastrados em sobreposição à Terra Indígena: 805 no total. Todo esse desmatamento detectado é ilegal, em territórios de usufruto exclusivo dos povos indígenas e que deveria ser protegido pelo Estado brasileiro.
Os indígenas vivendo em isolamento voluntário são especialmente vulneráveis e dependentes exclusivamente dos recursos da floresta para sobreviver.
Os MUNDURUCU (RO)- Garimpo: A terra indígena Mundurucu é uma das terras indígenas mais afetadas pelo garimpo ilegal, principalmente de ouro, com a ampliação de invasões e conflitos entre garimpeiros e indígenas, aumentado as graves ameaças à vida e à saúde daquela população.
Em agosto de 2020, com operação de combate ao garimpo ilegal em terras indígenas dos Mundurucus, planejada pelo IBAMA, foi suspensa, por determinação do Ministério da Defesa, após visita do Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que pousou no aeroporto de Jacareacanga para conversar com garimpeiros ilegais, inclusive levados para Brasília em avião oficial para reunião no Ministério do Meio Ambiente. Enquanto os garimpeiros voavam para Brasília, a ordem do Ministério da Defesa, Braga Neto, impediu a decolagem das aeronaves de fiscalização do Ibama.
Pesquisa realizada entre 2019 e 2020 pela Fiocruz, avaliou os impactos da contaminação por mercúrio em habitantes de três aldeias Mundurucu: Sawré Muybu, Poxo Muybu e Sawré Aboy, revelavam a extrema gravidade da contaminação e das doenças neurológicas que já estão sendo provocadas nos indígenas.
Desmatamento – Segundo o Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal (PRODES), 2020 foi o ano de maior taxa do desmatamento na terra indígena Mundurucu nos últimos 13 anos, totalizando 2.045,2 hectares desmatados, acumulando 16.968,6 hectares. Nos últimos dois anos apresentou os maiores índices de desmatamento, totalizando 3.869,9 hectares ou 22,8% do total desmatado no seu território. Em 2020, foi a quinta área indígena mais devastada do país.