.Por José Ribeiro da TV.

Segue abaixo o relato de uma amiga para sua família, que vale a pena ser lido. O relato pessoal que expõe o Brasil em sua real insanidade em tempos de pandemia.

(imagem pedro guerreiro – ag pará)

“É muito triste falar disso. Demorei bastante para escrever. Isso já faz alguns meses e é realmente dolorido perder alguém da família, ainda que seja uma pessoa que vivia plenamente a loucura promovida pela extrema-direita fascista. É comum ver nas redes sociais os relatos de brigas de família, as brigas de whatsapp e outros. Mas é certo que a coisa apenas se acentuou com o projeto da extrema-direita de criar um universo paralelo mentiroso. Na minha família, por exemplo, sempre houve um certo mal estar durante as duas décadas em que PSDB e PT protagonizavam uma disputa política regrada pelo respeito à Democracia. Mas a base do debate era a realidade. Isso estabelecia as regras e os limites.

Na minha família não tem muito isso de whatsapp, apenas o núcleo mais próximo. Ninguém fala muito. Mas quero dizer neste texto, para minhas primas e primos, que é dolorido de mais perder de repente alguém, uma avó bolsonarista, que fez parte de sua vida. Imagina para os nossos pais e mães, que são os irmãos dela.

Escrevo esse texto porque nossa avó era uma pessoa que podemos dizer politicamente insuportável. Sempre foi de direita, ou seja, não defendias as ideias de direita, mas tinha ódio do PT, do Lula e do PT (vale a pena repetir), que desde os anos 90 vinha se fortalecendo como partido político após a redemocratização.

Com a eleição de Lula, o ódio de classe aumentou e ela sempre esteve nessa onda do tucanato. Como ela é minha avó, sempre a encontrava em uma visita e a ouvia atacar o PT, a esquerda, as cotas, as políticas sociais, os comunistas, os pobres, etc e tal. O discurso que vocês conhecem muito bem por conviverem até mais com ela.

Quero relatar aqui o meu último encontro com ela, que ocorreu em 2019. Ela já passava dos 80 anos, mas com boa saúde, ativa, dirigindo carro, cuidando dos problemas da casa, cozinhando, resolvendo problemas de todos os filhos, filhas e netos. Nos últimas décadas de vida, após se aposentar, se dedicava totalmente aos filhos e netos.

Mas nosso último encontro na casa dos meus pais foi antes do início da pandemia. Ela disparou a falar mal de políticas sociais, bolsa-família, cotas, igualdade etc. No início tentei contra-argumentar, como sempre fazia, mas dessa última vez me veio um pensamento que dizia: “não adianta usar a razão com ela”.

Olhei para ela falando, gesticulando ativamente e percebi que não poderia argumentar, havia ali uma espécie de delírio de difícil diálogo. Percebi, acho que pela primeira vez, que tudo que fosse dito racionalmente para contra-argumentar seria em vão. Percebi nela algo que nunca antes tinha pensado. Era uma espécie de fantasma político.

Certa vez ela disse orgulhosa que o meu primo, neto dela, foi para o exterior no programa Ciências Sem Fronteira. Nessa época ela cessou um pouco os ataques a Lula, Dilma e ao PT. Mas recentemente estava dizendo que quem criou o programa Ciências Sem Fronteira foi Fernando Henrique Cardoso. O que fazer? Como dialogar? É possível? Como a democracia resolve isso?

Resolvi testar a ironia: “Sabe que eu concordo com você vó, devemos acabar com todas as políticas sociais e parar de alimentar esses vagabundos que não querem trabalhar. O bom é que vamos aumentar o número de assaltos, de crimes, quanto mais desigualdade e pobreza, melhor para aumentar a prostituição infantil, os estupros, a fome e a miséria. Poderemos ser mortos em um assalto, mas em compensação podemos ficar mais ricos”.

Ainda não me esqueço a sua reação. Acho que essa é a última imagem que tenho dela na cabeça. Ela ficou parada, me olhava, como se o cérebro estivesse rodando, rodando. Ficou um pouco sem saber o que responder, mas ela era instrumentalmente muito inteligente e, após alguns instantes de reconfiguração, ela voltou à carga desviando de se opor ao que disse, mas falando novamente contra os petistas, esquerdistas etc.

Depois de um tempo me levantei e saí com a certeza de que nada, absolutamente nada que fosse dito, contra suas crenças e convicções, seria apreendido, pensado, refletido por ela. Nesse sentido, não senti desgosto do diálogo como já havia sentido outras vezes, mas uma certa paciência e resignação. Não há o que fazer. Ela já foi abduzida.

Ela sempre foi tucana e de direita. Mas com a ascensão da extrema-direita, ela embarcou de cabeça. A extrema-direita a capturou de forma tão intensa que não teria mais volta. É por isso talvez que o PSDB esteja em uma encruzilhada e sem rumo. Muitos de seus eleitores fiéis foram para a extrema-direita quando os tucanos se confundiram com o bolsonarismo em 2018. Agora fica difícil abrir um espaço de deslocamento. Tenho certeza que nossa vó nunca iria voltar para o PSDB.

Quando fiquei sabendo que ela pegou Covid também fiquei sabendo que ela não tinha se vacinado. Apesar de tudo, isso me surpreendeu. Ela recusara a vacinação. É chocante. Fiquei sabendo que ela não acreditava no coronavírus, dizia que era invenção chinesa, uma gripezinha, se sentia receosa de algum sentimento comunista ou de solidariedade com estranhos fosse inoculado em seu corpo após tomar a vacina. É difícil dizer isso, mas é a forte realidade paralela que a internet possibilitou. Aliás, esses dias Bolsonaro disse que a Covid apenas encurtou a vida de algumas pessoas.

A história da nossa avó deixa claro que a mente humana é totalmente moldável e manipulável, desde que a própria pessoa esteja aberta para isso. Você poderia dizer que a nossa avó era uma pessoa ignorante, sem instrução, mas isso não condiz com a verdade. Ela não só tinha ensino superior completo no campo das ciências biológicas, como fez mestrado e doutorado, inclusive com pesquisa no exterior. Em resumo, era uma cientista. Não sei se boa na sua área, mas teve a oportunidade de conviver e fazer carreira no melhor do meio científico do Brasil e do exterior. E mesmo assim sua mente não foi capaz de reconhecer os fantasmas que a assombravam e atacavam os valores fundamentais da produção científica.

Em resumo, esse texto é só para dizer que eu senti muito, isso me entristeceu porque tudo isso fez parte da minha vida e da minha história. Quando fiquei sabendo de sua morte, a parte da difícil convivência política se apagou, e o que me feriu foi a minha própria existência maior do que nossas concepções políticas. O que mais me dói são as lembranças de infância na casa dela, brincando com meus primos e primas. Na realidade, isso é doloroso, perdemos uma bolsonarista lunática, mas alguém que fez parte da nossa vida, da minha história.