.Por Susiana Drapeau.

Durante um bom tempo fiquei pensando por que um pequeno país, apesar da quantidade de petróleo que possui, é tão amaldiçoado pela extrema direta e pela direita da América Latina, EUA e Europa. Aliás, no caso da Venezuela, tanto a direita quanto a extrema direita se afinam em um uníssimo pensamento.

Comércio em Caracas (foto franzconde – ccl)

Mas afinal, por que a direita e a extrema direita têm tanto pavor da Venezuela? O que na democracia (ou seria na ditadura?) da Venezuela é tão assustador para o mundo capitalista? Isso é intrigante. E não conseguia entender.

Para quem não é tolo e conhece a história, sabe que não é uma ditadura que assusta o mundo capitalista. Aliás, são as ditaduras financiadas pelo capitalismo que garantem a manutenção do sistema predatório há décadas. O Brasil e a América Latina viveram e vivem isso. Aliás, neste link é possível saber um pouco do apoio dos EUA a ditadores no mundo inteiro.

Além disso, até um estudo científico comprova que a Venezuela é uma democracia. O artigo se propôs a avaliar a situação da democracia na Venezuela da era chavista com base em critérios estabelecidos por Dahl (2005) e em parâmetros utilizados por O’Donnell (1997; 2000). “Trata-se, portanto, de uma avaliação mais objetiva, a partir de critérios dos dois autores e variáveis. A conclusão é que, apesar dos problemas, não há elementos suficientes para afirmar que o regime venezuelano deixou de ser democrático”, afirma o autor (LINK). Mais que isso, a população da Venezuela foi mais às urnas do que a do Brasil nos últimos anos. Em termos quantitativos, os venezuelanos participam mais da vida democrática do que os brasileiros sabichões. (LINK)

Sabendo disso, fica claro que não são ditaduras que assustam a direita dos EUA e do Brasil. O que realmente assusta a direita é a democracia. Mas por quê? E a questão correta que deve ser colocada é: o que na democracia da Venezuela provoca tanto pavor na direita e nos privilegiados?

O mais intrigante nessa questão é que diferente de Cuba ou China, a Venezuela não tem partido único. A oposição pode se organizar livremente e existem vários partidos, inclusive com apoio de proprietários de redes de comunicação. Na economia é intrigante. Não há legislação que possa assustar quem quer comprar um carro ou um imóvel. Basta acessar a internet para ver carros e imóveis à venda. Você pode comprar e vender livremente.

Uma matéria da insuspeita Época, revista do Grupo Globo que tem pavor da Venezuela. O título diz: “Crise atrai especuladores que buscam oportunidade de negócios na Venezuela”. Sim, com o boicote dos EUA impondo sofrimento à população (LINK), o que gera empobrecimento dos venezuelanos, especuladores brasileiros são atraídos ao país com a desvalorização da moeda. (LINK). Enquanto o povão fica com medo da Venezuela, os ricos brasileiros vão lá ganhar dinheiro com a crise.

Diante de tudo isso, é ainda mais intrigante o pavor da direita e dos privilegiados no caso da Venezuela. É algo estranhíssimo, mas há uma suspeita. E a suspeita está justamente no interior do sistema democrático. Ou seja, o que assusta é a democracia. Talvez seja um pequeno avanço nas regras democráticas da Venezuela que provoca o pavor. É a democracia viva que provoca o pavor. E esse avanço ocorreu não nas regras das eleições parlamentares periódicas, mas apenas na eleição de Assembleia Constituinte.

Um avanço na regra da eleição Constituinte na Venezuela permitiu mais representatividade da sociedade, reduzindo deformações da representatividade que ocorrem principalmente pelo poder econômico nas eleições. Veja o caso do congresso brasileiro eleito em 2018. São 108 empresários, 78 advogados, 34 médicos. Ou seja, essas três categorias representam 50% dos eleitos. Representativamente é como se o Brasil tivesse metade da população formada por essas categorias. Na Venezuela, pode acontecer a mesma coisa nas eleições do parlamento, mas não na Constituinte.

A Constituinte da Venezuela prevê uma parcela territorial (qualquer pessoa pode se eleger) e uma parcela setorial (representante de determinado setor próximo do número de pessoas na sociedade). Dessa forma, na votação territorial são eleitos 364 candidatos (cada município terá um representante e as capitais de estado dois, independentemente de sua população). Mas há também 173 candidatos por setores sociais e 8 por comunidades indígenas. Dentre esses 173, são eleitos trabalhadores (79), aposentados (28), estudantes (24), conselhos comunitários (24), camponeses e pescadores (8), empresários (5) e deficientes (5).

Nada impede que os trabalhadores e os aposentados eleitos sejam cooptados e votem contra os trabalhadores e contra a população em geral. Mas é um instrumento que amplia e dá mais garantia à população dentro das regras democráticas, assim como busca limitar que uma pequena categoria com poder econômico controle as eleições, como ocorre no Brasil.

Esse processo é uma inovação fantástica e histórica. É possível que o maior pavor para os privilegiados seja uma tendência mundial de representatividade setorial, de gênero, etc e não apenas territorial. É como passar do voto censitário (voto dos ricos) para o voto universal. Há receio de que outras democracias copiem ou até aperfeiçoem o modelo venezuelano. É claro que as elites vão se adaptar às mudanças, mas no início assusta. Ah, assusta!