O Brasil está dando certo para os bilionários enquanto aumenta o sofrimento para a maioria da população

.Por Potiguara Lima.

O sofrimento da população brasileira é histórico. Remete ao padrão de exploração, extermínio e violação desenvolvido ainda durante o período colonial para “lidar” com indígenas, negras e negros. Apesar do fim da escravidão e do estabelecimento de direitos básicos para alguns povos nativos sobreviventes do holocausto indígena, a permanência de uma sociedade baseada em privilégios econômicos às custas de muita violência contra as trabalhadoras, trabalhadores e povos tradicionais continua uma constante em nosso país.

(imagem andrea piacquadio – pxl)

Essa violência se exacerba em momentos de crise. Mesmo antes da pandemia, o país já vinha enfrentando um contexto adverso do ponto de vista do crescimento da economia. Os economistas caracterizaram como recessão a situação vivida no país em 2015 e 2016 quanto o PIB real teve uma queda. O PIB real é calculado tendo em vista a riqueza total produzida pelo país em um ano, medida em reais, mas considerando o aumento de preços em relação ao ano anterior. Ou seja, com o aumento de preços, a mesma quantidade de riquezas produzida terá uma capacidade menor de compra do que teria um ano antes. Por isso, se calcula o PIB real para se poder comparar o “poder de compra” das riquezas em diferentes anos, levando em conta a variação dos preços na economia.

Mesmo nos anos imediatamente anteriores e posteriores ao biênio 2015-16, também verificamos um crescimento do PIB real pouco expressivo. Costuma-se argumentar que se o PIB não cresce em uma porcentagem razoável, não se consegue incorporar os novos trabalhadores que estão chegando todo o ano no mercado de trabalho ou remediar a situação das inúmeras pessoas desempregadas. Há uma ideia muito difundida de que quando a economia cresce, geram-se benefícios para o conjunto da população. Há um sentido intuitivo nisso: mais riqueza produzida abre a possibilidade de mais riqueza a ser distribuída.

Porém, já foi mostrado inúmeras vezes que o crescimento econômico pode (e costuma) gerar riquezas sobretudo para poucos. E mesmo economistas conservadores já admitiram que é isso mesmo que acontece; mas para eles, não caberia alterar o padrão de crescimento econômico concentrador de riquezas, porque o mais importante seria fazer o bolo (o conjunto das riquezas nacionais) crescer, para depois dividi-lo. Entretanto, não é difícil entender que quando alguém se acostuma com um pedaço enorme de bolo, e tem influência sobre a divisão do bolo, é mais plausível que ele queira um pedaço ainda maior do que abra a mão de uma parte de seu pedaço.

Vivemos em um período histórico em que os debates sobre desenvolvimento do país praticamente desapareceram. Parece que na melhor das hipóteses costuma-se se assumir que desenvolvimento é sinônimo de crescimento econômico. De maneira geral admite-se que, se tiver que haver algum desenvolvimento, que seja consequência do crescimento econômico promovido pelas forças do mercado. E o que caberia ao poder público fazer é simplesmente e somente criar condições para a atuação das forças do mercado sem embaraços relacionados a direitos trabalhistas, sociais ou ambientais. Propostas de desenvolvimento seriam incômodas, inconvenientes e frutos de uma ingerência estatal inaceitável, na medida em que estabeleçam parâmetros básicos de direitos à saúde, educação, moradia, trabalho, água, biodiversidade e cultura. Nos últimos anos tivemos uma série de medidas realizadas sob a alegação de que se criaria um ambiente mais propício ao crescimento econômico. Assim, tivemos mudanças em relação aos direitos trabalhistas, no financiamento de saúde, educação e assistência social, na legislação ambiental e na previdência.

Já no contexto da pandemia, a pressão social fez com que em 2020 fosse pago o chamado “auxílio emergencial” para mais de 60 milhões de brasileiros, segundo informações do governo federal. Parte expressiva da população brasileira se enquadrou nos critérios que apontavam uma situação de vulnerabilidade social e habilitavam para o recebimento do auxílio emergencial. Em 2020 foram pagas nove parcelas mensais, sendo 5 delas nos valores de 600 e 1200 reais e 4, nos valores de 300 e 600 reais. Mães provedoras de família tiveram acesso ao dobro do valor pago ao restante das trabalhadoras e trabalhadores. O valor destinado ao programa de auxílio emergencial ficou em torno de 290 bilhões de reais ao longo dos 9 meses em que foi pago em 2020 (de abril a dezembro). Foram recursos que permitiram a sobrevivência de milhões de famílias brasileiras e tiveram um papel central na movimentação do comércio e serviços em todo o território nacional. Podemos dizer que os recursos do auxílio emergencial foram destinados de maneira praticamente exclusiva para a garantia da sobrevivência e para a movimentação da economia real, com destaque para a compra de itens ligados à alimentação.

No início de 2021 surgiram alegações por parte dos representantes do governo e do mercado de que seria impraticável um auxílio emergencial nos valores praticados em 2020. Como de praxe os posicionamentos do mercado são amplificados pelos grandes meios de comunicação, soando a boa parte da população como inquestionáveis e unânimes. Os que defenderam um auxílio emergencial “desidratado” pouco falaram sobre o papel do auxílio emergencial em evitar que milhões de brasileiros caíssem na miséria extrema. A preocupação maior foi e é de não desequilibrar as contas públicas, para garantir as condições para um bom andamento da economia.

A hegemonia dessa forma de organizar as contas públicas, sempre contingenciando recursos para remediar a miséria dos mais pobres e para garantir saúde e educação para o conjunto da população brasileira, ocorre de forma mais sistematizada há cerca de três décadas. O Estado brasileiro passou a contar com mecanismos legais para evitar qualquer risco aos capitais investidos na dívida pública. Deu-se o nome a isso de responsabilidade fiscal. Um nome que dá um frio na espinha só de pensar em questionar. Aventar a possibilidade de os mecanismos de organização das contas públicas serem, na verdade, meios para garantir a especulação e os negócios realizados com a dívida pública é uma blasfêmia. De forma que chegamos ao ponto de soar irresponsável a reivindicação de que recursos públicos sejam destinados a evitar que milhões de famílias brasileiras passem fome e/ou sejam despejadas de suas casas.

Falamos mais acima de contextos em que há crescimento econômico e seus benefícios são capturados por poderosos agentes econômicos, que se enriquecem ainda mais. Mas e quando não há crescimento econômico? A realidade brasileira mostra que mesmo na ausência de crescimento econômico, os poderosos agentes econômicos (os super-ricos) têm se enriquecido muito.

Deveria ser algo escandaloso, que remetesse a um debate sério, urgente e profundo sobre a alteração da forma de se produzir e distribuir as riquezas produzidas pela sociedade. Esperaríamos no mínimo propostas de tributação e gastos públicos para evitar ou pelo menos corrigir parte dessa distorção. Mas de forma alguma é esse o debate e as alternativas que o mercado, o governo e a grande mídia apresentam. Esses setores todos, que até trocam algumas farpas em relação ao grau de ignorância e insensibilidade do governo Bolsonaro, são uníssonos em afirmar que o auxílio emergencial deve ter o menor valor possível e que os recursos para os direitos sociais (incluindo a saúde pública!) devem ser reduzidos de acordo com a EC95 ou com referências ainda mais restritivas. Há que se liberar maior parcela dos recursos públicos para permitir uma maior margem de valorização dos grandes capitais através da dívida pública. E se há algum patrimônio estatal com alguma possibilidade de gerar lucros para os imensos capitais acumulados pelos super ricos, esse patrimônio deve ser imediatamente privatizado.

Essa forma de organizar a repartição das riquezas na sociedade brasileira tem feito crescer a taxas espantosas o patrimônio dos bilionários e aumentado o seleto grupo dos super-ricos brasileiros. (Para fins dessas reflexões não consideramos dados referentes a 2021, que trouxeram a novidade de novos bilionários brasileiros no grupo dos bilionários mundiais – com fortuna superior a um bilhão de dólares).

Temos uma política econômica direcionada para o benefício de um grupo muito restrito de seres humanos. E a situação da pandemia tornou isso ainda mais flagrante. Segundo a Revista Forbes, o número de bilionários brasileiros em 2020 chegou a 238 pessoas. Se dividirmos a variação patrimonial (de 424 bilhões de reais) entre 2019 e 2020 do conjunto dos bilionários brasileiros por esses 238 indivíduos, teremos em média um ganho de 1,78 bilhão por bilionário entre 2019 e 2020. Por outro lado, se dividirmos os 295 bilhões de reais destinados ao Auxílio Emergencial para 67,9 milhões de pessoas (que é o número daqueles que receberam ao menos uma parcela deste auxílio), chegamos à média de 4350 reais pagos ao longo de 2020 por trabalhadora ou trabalhador em situação de vulnerabilidade. Esse valor dividido pelos 9 meses dá menos de 500 reais por mês a cada trabalhador. Diante do pior momento da pandemia até então, entre fevereiro e março de 2021, o governo Bolsonaro fez a escolha de reduzir o alcance e o valor do auxílio emergencial. Uma escolha que joga mais brasileiros para o desespero, amplia a contaminação por não garantir condições para o distanciamento social. O resultado já conhecemos de forma muito triste: mais contaminações e mais mortes. Entretanto, é necessário que dezenas de milhões de famílias brasileiras não tenham acesso a 500 reais para sobreviverem, pois isso permitirá que os bilionários continuem aumentando suas fortunas na casa das centenas de milhões por mês.

Não há como pensarmos a política brasileira sem ser no contexto dessa escandalosa desigualdade econômica, embora mercado, governo e grande mídia, tratem com naturalidade como inevitáveis as escolhas econômicas que amplificam o genocídio orquestrado pelo presidente Bolsonaro.

O bolsonarismo é um movimento político-ideológico que propõe, incentiva e aprofunda toda sorte de violência social para manter os privilégios na sociedade brasileira. O governo Bolsonaro operacionaliza essa política manifestando brutalidade em relação à retirada de direitos e servilismo em relação a tudo o que for necessário para tornar os negócios dos super ricos cada vez mais lucrativos. A influência dos super-ricos sobre a economia brasileira é crescente. Em 2020, a fortuna dos bilionários representava 22% do PIB do país, um crescimento de 5,4% em relação ao ano anterior.

É evidente que não há desarranjo entre os interesses que dominam a economia brasileira e o bolsonarismo. Cabe a nós escolhermos se aceitaremos o aprofundamento desse modelo de sociedade baseado na acumulação de riquezas de um lado e na miséria de outro. Se permitiremos o aumento da segregação entre os poucos que humilham e os inúmeros que são humilhados. A proposta da burguesia brasileira é muito clara: intensificar a violência social para manter seus privilégios. E o bolsonarismo é a expressão mais acabada desse projeto.

Estamos diante de um aparente beco sem saída, em que o único horizonte possível parece ser o de suplicarmos por uma conciliação com os super-ricos para, quem sabe, eles se sensibilizarem um pouco com o nosso sofrimento e humilhação. Mas diante da gravidade da situação talvez seja possível relembrarmos que é a nossa classe que produz toda a riqueza do país. E que existe a possibilidade histórica de colocarmos a riqueza produzida pela classe trabalhadora à serviço de uma vida digna pro povo brasileiro.

Potiguara Lima é doutorando em Educação na Unicamp, cientista social e professor de educação básica.