.Por Ricardo Pereira.

Naquela que é uma das falas mais conhecidas de “Crepúsculo dos Deuses” (1950), o protagonista – um roteirista chamado Joe Gillis (William Holden) – argumenta que os espectadores do cinema não sabem que existem roteiristas: “Eles acreditam que os atores inventam seus diálogos enquanto falam”. Claro que através da personagem estão falando os dois roteiristas do filme, Billy Wilder que também o dirigiu e Charles Brackett. Eles expressam a insatisfação por esse apagamento que seria próprio da forma como se organizara o sistema dos grandes estúdios com cada departamento cuidando de uma das etapas do filme ficando, no fim das contas, só o nome do produtor com os créditos. Na Hollywood que “Crepúsculo dos Deuses” comenta tampouco o diretor havia adquirido o status que a “política dos autores” na década seguinte viria a lhe conferir.

(imagem cena mank – div)

Por isso que um dos maiores méritos de MANK, dirigido por David Fincher, é ter como seu protagonista um roteirista brilhante que escreveu – assumindo todos os riscos possíveis, incluindo perda de prestígio, ostracismo e ruína financeira – um dos filmes mais importantes da história do cinema, considerado por muitos anos pela famosa enquete da revista britânica Sight & Sound, o melhor de todos os tempos. É claro que estou falando de “Cidadão Kane”, a estreia de Orson Welles na direção. Seu nome? Herman J. Mankiewicz.

Nascido no ano de 1898 na cidade de Nova York – filho de imigrantes judeus alemães – ele se formou na Universidade de Columbia em 1917 e se tornou correspondente do Chicago Tribune em Berlim durante a década de 1920. No seu retorno aos Estados Unidos ingressou na renomada mídia escrita nova-iorquina como repórter e crítico de teatro até que o produtor Walter Wanger o convidou para trabalhar em Hollywood para escrever roteiros e os intertítulos dos filmes mudos. E, assim, no final de 1927 ele já era chefe do departamento de roteiro da Paramount.

Alcoólatra, jogador e dono de um humor verbal incomparável, Mankiewicz foi conquistando aos poucos um lugar de destaque nos círculos de poder da indústria cinematográfica, algo impensável para um roteirista. É por isso que ele acabou por testemunhar muitas coisas, talvez até demais para seu próprio bem, considerando seus traços autodestrutivos.

Mas MANK também ultrapassa seu protagonista, o longa presta uma homenagem a todo aquele talento que existia em Hollywood na época. Em um flashback inicial, o filme nos leva a 1930, quando o escritor Charles Lederer chega aos estúdios da Paramount, convocado por Mankiewicz, e é apresentado a uma espécie de “dream team” de roteiristas – como a dupla George Kaufman e Sidney J. Perelman (que seriam responsáveis pelos filmes dos Irmãos Marx), os famosos Charles MacArthur e Ben Hecht (de “A Primeira Página”, 1931) e, ao irmão mais novo de Herman, Joseph, que começou escrevendo intertítulos, depois roteiro (ganhou o Oscar por “Skippy”) até se tornar, a partir de 1946, um dos grandes diretores da história de Hollywood (são deles, por exemplo, “A Malvada”, 1950, e “A Condessa Descalça”, 1954).

São nomes que podem dizer pouco ou quase nada para o público médio do cinema de hoje, mas esses homens foram os autores de alguns dos melhores filmes do período e é um grande prazer vê-los mesmo que recriados ficcionalmente recebendo o crédito que merecem. Não significa, no entanto, que MANK seja uma história coral, o foco é o relato dos motivos que levaram Mankiewicz a escrever o roteiro de “Cidadão Kane”.

Não fica claro, no filme, há quanto tempo o roteirista e Orson Welles se conheciam, nem qual era o grau dessa amizade (embora ela pareça mais conflituosa que qualquer outra coisa), mas Mankiewicz como se sabe havia escrito os roteiros do programa de rádio do Mercure Theatre de Orson Welles, além de ter revisado o roteiro que este escreveu para seu frustrado projeto “The Smiler with a Knife”, em 1939. Mas em MANK essa relação parece reduzida a um contrato entre Welles e Mankiewicz com o primeiro querendo tirar proveito da experiência do segundo como escritor. É que Orson Welles precisava provar à RKO que esta não havia errado em contratá-lo e lhe dar total liberdade criativa, e Mankiewicz tinha a história, a habilidade e a atitude corajosa para contá-la. Então ele concorda em escrever a biografia de um magnata da imprensa imaginário. Porém, a imaginação tem suas limitações, já que o projeto do roteiro tem como principal modelo não confessado William Randolph Hearst, dono de jornais e rádios, a quem Mankiewicz conhecia bem por ter feito parte do seleto círculo de íntimos admitidos em sua suntuosa mansão californiana de San Siméon.

MANK começa em 1940, quando Welles aprisiona Mankiewicz (interpretado por Gary Oldman) em Victorville, um rancho a 160 km a nordeste de Los Angeles, acompanhado de uma enfermeira e uma datilógrafa. Mantê-lo sóbrio seria responsabilidade de John Houseman, parceiro de Welles no Mercury Theatre. Já Welles (Tom Burker) passa praticamente todo o filme distante – em Los Angeles ocupado com os preparativos pra filmagem, numa gravação de Macbeth ou fazendo uma turnê de palestras. O roteirista preso à cama devido à uma perna quebrada após um acidente de carro tem pouco menos de dois meses entre março e maio de 1940 para entregar a Welles uma primeira versão do roteiro, intitulada preliminarmente “American” e inspirada na vida de Hearst. A partir daí, as revisões e reescritas de Welles começariam.

William Randolph Hearst (1863-1951) era na época um dos homens mais ricos e influentes da América – guardadas as devidas proporções, uma espécie de Roberto Marinho, para citar um exemplo mais próximo a nós. Ele era dono de um império jornalístico e fora membro da Câmara dos Deputados do Congresso dos Estados Unidos por dois mandatos consecutivos pelo Partido Democrata. Apesar disso, fracassou nas tentativas de conquistar a prefeitura de Nova York, o governo daquele estado e ser indicado pelo partido como candidato à presidência dos Estados Unidos.

O envolvimento de Hearst com o cinema está diretamente relacionado ao seu caso com uma ex-showgirl que desejava ser estrela de cinema, Marion Davies, 34 anos mais jovem que ele. Para promover sua carreira, o magnata fundou uma produtora, a Cosmopolitan Pictures, em 1918. Inicialmente a Paramount distribuiria os filmes dessa empresa, mas entre 1924 e 1934 foi a Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) quem estabeleceu parceria com a Cosmopolitan.

A amizade de Hearst com um homem poderoso de Hollywood como Louis B. Mayer era uma aliança estratégica que ultrapassava os limites do entretenimento. Os dois armariam uma campanha de difamação contra o escritor e político socialista, Upton Sinclair, autor do clássico “The Jungle”, de 1906. Sinclair era candidato ao governo da California nas eleições de 1934, mas Mayer e Hearst pressionaram seus contratados a gravarem depoimentos e fazerem doações para a campanha do republicano Frank Merriam, além de uma série de pequenos filmes e programas de rádio que disseminavam mentiras contra Sinclair – a exemplo do que fez Steve Bannon nos EUA para Trump e para Bolsonaro no Brasil.

Herman Mankiewicz testemunhou todas essas manobras que terminaram com a derrota de Sinclair. O roteiro de “Cidadão Kane” – uma sátira sobre a vida e carreira de Hearst e que acabou por definir sua imagem para as futuras gerações – pode ser visto como uma forma de justiça poética, a única maneira de alguém como Mankiewicz denunciar esses eventos e acertar contas com um homem considerado intocável.

MANK volta no tempo continuamente, cobrindo toda a década de 1930 em um preto e branco evocativo (trabalho do diretor de fotografia Erik Messerschmidt) que expõe o contraste entre as massas empobrecidas vítimas da depressão econômica e a opulência dos magnatas dos grandes estúdios de cinema que tem na extravagante mansão de Hearst, com seu zoológico particular, o exemplo perfeito dessa ostentação indiferete. O roteiro de “Cidadão Kane” critica essa desigualdade social e econômica de uma forma que até então poucos ousaram denunciar. A decisão de Mankiewicz de caricaturar a vida de Hearst – e consequentemente a de Marion Davies (interpretada por Amanda Seyfried indicada como atriz coadjuvante ao Oscar deste ano) – foi então moral. Além disso, ele sentia que não tinha mais nada a perder.

“Nenhum [dos roteiristas] era mais amargo, miserável e estranho do que Mank… um monumento perfeito à autodestruição” – comentaria Orson Welles à Peter Bogdanovich em “Este é Orson Welles” (Editora Globo). O diretor aproveitou esse mal-estar para criar o escândalo perfeito que faria todos falaram dele e de seu talento precoce (Welles tinha 26 anos quando filmou Cidadão Kane). O que aconteceria a Mankiewicz não era da sua conta. Assim, MANK tampouco é a história dos bastidores de “Cidadão Kane” como se tem comentado, mas dos motivos de um homem para, da ficção, realizar a única vingança possível, a proporcionada pela arte. E, além disso, reivindicar para si o mérito de ter tido a coragem de fazê-lo.

No filme, Louis B. Mayer dá uma aula para Joseph L. Mankiewicz sobre a natureza do cinema, dizendo que neste mundo o espectador não adquira nada com seu dinheiro, exceto uma lembrança – “O que você compra ainda pertence a quem o vendeu para você. Essa é a verdadeira magia do cinema”. MANK então não pertence a nós, sempre será de Jack Fincher, um jornalista que começou a escrever este roteiro antes de seu filho David estrear na direção com Alien 3 (1992), após uma carreira de sucesso como diretor de vídeo-clips. Jack tomou a famosa teoria de Pauline Kael como referência. Em seu ensaio, “Criando Kane” (Editora Record), publicado originalmente em 1971, a crítica de cinema reivindica para Mankiewicz a autoria do script de “Cidadão Kane”, minimizando as contribuições de Welles, algo que a história já esclareceu.

Quando faleceu em 2003, Jack Fincher deixou várias versões escritas de um projeto que ninguém estava disposto a financiar, até agora. Que MANK exista e tenha sido feito com o rigor formal com que ele sonhou, é a melhor maneira do filho homenagear o pai. E, consequentemente, todos os grandes roteiristas de Hollywood através de Mankiewicz.

MANK é o filme com mais indicações ao Oscar deste ano, dez ao todo. Melhor Filme, Direção, Ator, Atriz, Trilha-Sonora, Fotografia, Figurino, Direção de Arte, Som e Maquiagem, mas, estranhamente, o roteiro de Jack Fincher foi preterido pela Academia. A cerimônia de premiação acontece no dia 25 de Abril.

MANK está disponível no Netflix.