.Por Gabriel San Martin.
Uma das premissas fundamentais do modernismo brasileiro consistiu na construção de uma nova linguagem artística de ruptura com o academicismo e pautada fundamentalmente em temas nacionais. Com a antropofagia, Oswald de Andrade sugeriu uma ruptura absoluta com a influência e com as sequelas deixadas pela intervenção da cultura internacional sobre o Brasil. Nesse sentido, é proposta a deglutição de toda a “importação de consciência enlatada”. Esse discurso modernista influi fortemente em toda a cultura brasileira. Nas artes, a representação de temas nacionais, muitas vezes de modo enaltecedor, torna-se o assunto de maior interesse dos nossos modernistas.
É diante desse plano de fundo que Candido Portinari (1903-1962) assume fervorosamente a responsabilidade pelo desenvolvimento de uma pintura centrada na relação entre o brasileiro e o trabalho. Filho de retirantes italianos, trabalhadores de lavouras cafeeiras, Portinari apresenta uma fascinação em atribuir, na sua pintura, um caráter homérico a essas personagens. Em via contrária às vanguardas modernistas europeias, que tentavam ao máximo escapar à representação do trabalhador instrumental, os operários consistem em um dos temas mais recorrentes da obra do artista. Em O Lavrador de Café (1934) e em Mestiço (1934), por exemplo, o artista deixa evidente o caráter glorificador que ele confere a esses trabalhadores.
Em O Lavrador de Café, a personagem, numa posição quase heroica e estampada por um olhar sério, mira para o horizonte. Com seus braços fortes e pés grandes, decorrente da grande carga de trabalho, o operário adquire uma forma quase escultural. Apoiado em sua enxada, imerso em um plano de fundo composto por uma paisagem vasta, quase sublime, a sua bravura é mais uma vez enfatizada em vista a um olhar valente e corajoso. O ofício dessa personagem é dotado de uma dimensão intrépida e quase que digna de louvação.
Em Mestiço, o próprio modo como a personagem está posicionada, de braços fortes e cruzados, já sugere um vínculo com o caráter monumental semelhante à maneira como são retratados os heróis de filmes e quadrinhos. O olhar fixo em direção ao espectador, acompanhado pelos traços fortes da personagem e as cores tonais da pintura, ressaltam a seriedade, integridade e vivacidade do trabalhador representado. Não obstante, as mãos sujas e o torço forte engrandecem o trabalho do operário.
Esse caráter dignificador atribuído por Portinari aos trabalhadores, no entanto, encontra a sua problematização nos artistas e teóricos marxistas da arte das vanguardas modernistas europeias. Para entender essa problematização, basta pensar no modo como Marx enxerga o trabalho operário. Para o autor, a sociedade capitalista se encontra fundamentalmente estratificada em dois grandes polos – proletariado e burguesia*. Diferente dos burgueses, o proletário não tem produtos manufaturados para vender. Em vista disso, é submetido à condição de venda da sua força de trabalho. Assim, tendo de vender a sua força de trabalho, o proletariado é também sujeito de uma condição alienante e instrumentalizada. Não é sem motivo que a maior parte das representações modernas enaltecedoras desses operários estavam inerentemente ligadas a regimes totalitários.
Aversos a essa condição alienante, os movimentos de vanguarda europeus recusam veemente representações dessa ordem. Para esses artistas, a heroicização de operários explorados e submetidos a uma condição de alienação estimularia um conformismo sobre essas circunstâncias precárias nas quais os trabalhadores estavam inseridos. Assim, em detrimento de uma naturalização, esses artistas defendem a necessidade de um diagnóstico crítico que recuse a sujeição desses trabalhadores a condições precárias, alienantes e abusivas.
O problema, para esses intelectuais e artistas, não reside na condição de proletariado, mas, sim, na condição alienante na qual esses trabalhadores estão inseridos. Assim, o objetivo fundamental não consiste na ascensão de classe: a burguesia ainda é uma inimiga. A tarefa central, na verdade, reside no desmantelamento dessa condição alienante e explorada sobre a qual o trabalhador está submetido. Portanto, para esses artistas, o proletariado deve ser pensado e retratado em vista de um caráter transformador e capaz de romper com a condição alienante na qual ele se encontra imerso.
É resoluto que as intenções de Portinari, com as suas pinturas e os seus modos de representação, foram das melhores. Todavia, enquanto inserida em uma poética militante, é fundamental pensar a obra de Portinari em vista da circunstância política em relação a qual ela está circundada. Não é coincidência que a guinada social também de Tarsila do Amaral tenha ocorrido após o seu contato, em 1931, com o regime stalinista.
Retratar o trabalhador enquanto uma peça nobre e importante é, sem dúvidas, uma tarefa digna. E, além disso, Portinari foi capaz de notavelmente apresentar a realidade do trabalhador brasileiro com primor. Contudo, é também crucial lembrar do regime de exploração e alienação ao qual esses operários estavam (e estão) submetidos. Nesse sentido, pensando a condição do trabalhador enquanto capaz de ser transformada: e não como uma condição heroica a ser mantida.
*Apesar de Marx discutir a existência de setores um pouco mais complexos envolvidos entre esses dois grandes polos – como é o caso dos lumpemproletariado e da média-burguesia manufatureira –, a tese do autor é fundada na noção de que a sociedade burguesa se caracteriza pela simplificação dos antagonismos de classe. Para Marx, a “sociedade divide-se cada vez mais em dois campos opostos, em duas grandes classes em confronto direto: a burguesia e o proletariado”.