.Por Gabriel San Martin.
A prática de engendrar ídolos designados especificamente para guiar os movimentos de um determinado grupo de pessoas é uma atividade já de longa data, e não se resume ao que vemos hoje na política e na cultura nacional e internacional. Seja em esfera religiosa, cultural, política ou social, a praxe de conceber, a partir de determinados ícones, modelos de vida, pensamento ou personalidade é algo recorrente. Se, por um lado, em âmbito político, essa gênese de ídolos é comumente dada através de messianismos, por outro lado, na dimensão da pessoalidade particular de cada um, isso é dado, por exemplo, através de figuras emblemáticas do que Hannah Arendt nomeou cultura de massas – hoje, absorta por mídias como o cinema e as redes sociais. Em outras palavras, não é incomum a atribuição do status de modelo a determinadas pessoas ou eventos, de modo a pensar uma necessidade de se moldar ao que essa figura representa. Nesse sentido, gerando até um esquecimento da dimensão material daquela pessoa ou objeto pelo qual se desenvolve uma admiração: transformando-o puramente em imagem, em abstração.
Reflexões desse feitio foram enfaticamente pensadas pela pop art e, particularmente, por Andy Warhol (1928-1987). Em seus vários trabalhos com figuras emblemáticas da cultura popular, Warhol pensa com brilhantismo esse processo de metamorfosear determinadas pessoas e produtos em puras imagens. Essa investigação do artista parte de eventos trágicos divulgados massivamente nas grandes mídias, como a morte de John Kennedy, seguindo até personagens universalmente massificados, como os rostos de Elvis Presley e Marilyn Monroe.
Se a mistificação midiática atual desenvolve um modelo de comportamento generalizado de idolatria entre os seus admiradores, Warhol percebe um processo não muito distinto ocorrendo entre os ídolos da década de 1960. Ao passo que, pela sua universalidade e onipresença, esses ídolos pareçam desenvolver um sentimento de proximidade, eles também representam entidades abstratas, impessoais e completamente inalcançáveis. Essa contradição entre proximidade e impessoalidade dessas figuras, todavia, parece crucial para a formulação de uma imagem idealizada tal como a do ídolo midiático. Afinal, enquanto é o sentimento de aproximação que promove uma identificação entre o interlocutor e o ídolo, é a impessoalidade desses ícones que possibilita um processo de idealização e desmaterialização no observador. Para Warhol, a banalidade da cultura de massas é fundamental em vista do desenvolvimento de uma universalidade e de um engrandecimento dos grandes ícones populares.
Em sua serigrafia Liz #3 [Early Colored Liz] (1963), por exemplo, é fácil notar como as cores são posicionadas irregularmente em relação à forma e aos detalhes do rosto de Liz Taylor. O modo como as cores são posicionadas dão gênese a um aspecto semelhante ao de uma máscara no rosto da figura. Evidenciando, nesse sentido, o caráter distante que essas imagens apresentam da figura retratada. A atriz perde toda a sua materialidade e corporeidade em decorrência de uma transformação absoluta da pessoa concreta dela em uma máscara – em imagem superficial. Isto é, as sensações de conhecimento e assimilação desenvolvidas a respeito dessas figuras retratadas nas grandes mídias consistem, na obra de Warhol, em um grande engano. Dentro da sociedade de massas, essas pessoas, na verdade, não existem: conhecemos apenas o espectro abstrato delas. Por mais que tenhamos diariamente um contato indireto com esses ídolos, Warhol rememora que, na verdade, o que existem deles são imagens. O que chamamos de ícones populares são imagens, e não pessoas.
O caráter estritamente imagético dessas figuras é ainda ressaltado pelo artista através da repetição e da falta de importância atribuída à cor. Em “Orange Car Crash (5 deaths 11 times in orange) (orange disaster)” (1963), por exemplo, o artista retrata repetições consecutivas de uma mesma imagem de um acidente automobilístico sobre uma tinta laranja. Warhol cria obras dessa mesma categoria com imagens de celebridades, como Elvis Presley, ou de produtos populares, como a sopa Campbell’s. De tão reprodutíveis que se tornam, sejam imagens de celebridades, acidentes ou dos próprios produtos, elas são todas posicionadas no mesmo âmbito de produto a ser vendido à sociedade. Da mesma forma que marcas e produtos são colocados em prateleiras de lojas e supermercados para serem vendidos ao público, essas imagens da cultura de massas passam por um processo semelhante. Esse interesse pela reprodutibilidade pode ser visto no próprio nome do ateliê de Warhol: Factory (“fábrica”, em inglês) – remetendo à reprodutibilidade das fábricas de produtos destinados ao consumo em massa.
De qualquer maneira, essas imagens da cultura de massas têm as suas máscaras aparentes, reveladas, na obra de Warhol. Seja a cor em que o tema é retratado ou a quantidade de vezes em que ele é reproduzido, este sempre vai consistir meramente numa imagem impessoal: de modo a lembrar que vemos somente a superfície através dessas imagens. Diferente da poética, por exemplo, dos impressionistas, que davam tanta ênfase à cor para retratar a impressão específica do momento em que pintam, Warhol ignora a cor. Com a universalidade desses ícones retratados, o artista parece entender uma capacidade de negação mesmo do espaço-tempo por parte dessas imagens.
Se, por um lado, o artista afirma se interessar profundamente pelo desenvolvimento de uma superficialidade e fetichismo imagético em sua obra, ele também deixa claro que conhece com estreiteza a dimensão iconológica, idealizada e profética na qual essas figuras se encontram imersas. A tal superficialidade pela qual o artista exprime tamanho deslumbramento é manifestada no sentido de, adverso a um empenho objetivando remover as máscaras (como que negando a superficialidade e o banal), buscar construir uma máscara para si mesmo. A criação desse personagem artístico e midiático, no qual Warhol fica absorto, expõe a tentativa de, oposto ao menosprezo pelo superficial da imaterialidade desses ídolos, ressaltar a admiração e a vontade generalizada de atenção e fama que abrange a sociedade de massas. Isso pode ser observado, por exemplo, ao Warhol, comentando as suas obras nas quais são retratados acidentes automobilísticos, afirmar que “um dia, todos terão direito a 15 minutos de fama” – mesmo que seja a fama de uma notícia sobre um acidente.
Warhol parece, não obstante, negar a concepção comum e romântica do artista genial, formulada por estetas como Kant e Schopenhauer. Todo o seu processo artístico parte de uma exaltação do comum e do banal: uma negação da estratificação entre cultura popular e cultura erudita. Enquanto artista que pensa a sociedade do espetáculo, Warhol coloca a si mesmo dentro dela: assim como todos, ele quer e reivindica os seus 15 minutos de fama – ele não é especial. Diferente do artista genial, Warhol não tem nenhuma pretensão aurática para a sua obra. Contudo, ele também lembra que esse caráter imagético de aspiração à fama consiste sempre numa superfície. Uma superfície ao modo de nossas máscaras.
Gabriel de Campos Barrera San Martin – Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador em estética e crítica de arte.