Práticas descoloniais na arte contemporânea: e as instituições?
.Por Gabriel San Martin.
Não faltam artistas e curadores que vêm, já há um tempo, problematizando a colonialidade em suas diferentes formas. No entanto, como se encontram as instituições de arte brasileiras diante disso?
Se há um ambiente no qual foram legitimadas discussões e práticas do que recentemente intitulou-se “descolonial”, esse foi o mundo da arte. Cada vez mais, ouve-se falar sobre “práticas descoloniais”, “curadorias descoloniais” e afins. Note que, com isso, quero dizer que não faltam, hoje, artistas e curadores que efetivamente praticam essa descolonialidade em seus respectivos trabalhos. De todo modo, venho já me perguntando há algum tempo a respeito de como ficam as instituições artísticas nessa história toda.
Nos últimos vinte anos, vem se tornando (felizmente) cada vez mais consensual que o reconhecimento dos direitos humanos e das minorias não é uma questão dispensável ou desnecessária. Esse diagnóstico é fundamental para a construção do que hoje se entende por práticas ou estudos “descoloniais” – formulados originalmente pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano.
A descolonialidade consiste em um modo de praticar, olhar e pensar desvinculado do ponto de vista hegemônico. Partindo, dessa forma, de um olhar não eurocêntrico. Se a noção de modernidade é tão fundamental para a compreensão do pensamento europeu a partir de 1789, Quijano vai perceber que, o que lá se chamou de modernidade, para nós consistiu em uma colonialidade. Colonialidade essa que se dá em âmbito de raça, classe social, gênero e geografia. E, não obstante, foi inerentemente essa colonialidade a qual fomos submetidos que viabilizou a existência de uma modernidade na Europa.
Nesse sentido, o que usualmente é entendido por uma prática “descolonial”, seja ela artística ou curatorial, é a prática que se fundamenta na recusa à imposição de um determinado modo de pensar entendido como universal. Essa “universalidade do pensamento” é, na verdade, consumada a partir de uma determinada lógica estabelecida em um determinado lugar – lugar esse que tem raça, gênero e classe. E, portanto, a prática descolonial consiste naquela que, em detrimento de principiar desse lugar do outro, parte do nosso lugar. Funciona, em vista disso, como um contraponto à noção de uma estrutura única do pensamento, da qual parte o raciocínio eurocêntrico: o descolonial entende uma estrutura multicultural do pensamento.
Se artistas e curadores já operam baseados nesse conceito com recorrência, falta indagar a respeito de como as instituições de arte vêm se relacionando com a ideia de descolonialidade nos últimos anos.
Evidentemente, é muito difícil, se não impossível, tratar do assunto aspirando a uma totalidade tal que englobe absolutamente toda e qualquer instituição de arte nacional. Pensando nisso, intento-me a, ainda que reconhecendo a existência de contraexemplos, refletir de um modo mais geral e abrangente sobre a relação das instituições museais brasileiras com a descolonialidade. Desse modo, vislumbrando o momento atual de uma maneira um pouco genérica, mas que, em certa medida, seja capaz de ponderar acerca da instituição de arte nacional como um todo.
Por um lado, as galerias de arte e as instituições culturais de atividades mais amplas e educativas (como, por exemplo, o SESC e o Itaú Cultural) já vêm há um bom tempo discutindo temas dessa categoria. Os museus, por outro lado, vêm colocando em prática um olhar descolonial há poucos anos. Tendo, nesse contexto, encetado a tratar com maior destaque temas dessa espécie muito recentemente. Pensando como exemplos o MASP, a Pinacoteca do Estado de São Paulo e o MAM-Rio, temos três casos de museus que tem dado ênfase a reflexões relacionadas à descolonialidade.
O MASP vem trabalhando com o desenvolvimento de exposições de cunho descolonial desde meados de 2017. Essa descolonialidade do Museu de Arte de São Paulo vai ao seu apogeu entre 2019, com exposições tratando explicitamente de temas dessa categoria, e 2020, com eventos como a contratação da curadora Sandra Benites – de etnia Guarani Nhandeva.
A Pinacoteca do Estado de São Paulo, por outro lado, chega apenas em 2020 com uma proposta descolonial definitiva. Tópicos como representatividade e opressão vêm sendo, recentemente, pensados e discutidos com bastante destaque pelo museu. O principal evento que marca essa transição é a nova exposição do acervo permanente, caracterizada por um teor bastante crítico. Se a Pinacoteca veio, até então, tradicionalmente configurada como um museu de caráter quase que exclusivamente histórico, a nova exposição do acervo permanente evidencia o interesse por uma transformação na agenda do museu.
A respeito do MAM-Rio, com a passagem de curadores como Paulo Herkenhoff, o museu já vem há vários anos dialogando com a descolonialidade e o multiculturalismo. Recentemente, em 2020, com a entrada de Keyna Eleison na direção do museu e o interesse em desenvolver uma visão plural sobre a arte, o MAM-Rio torna, mais uma vez, evidente o seu interesse enfático por esses temas.
Com vista a isso, não é difícil observar a existência de um determinado processo de descolonização da instituição artística nacional ocorrendo nesse momento. Ainda que algo muito mais recente em relação à prática descolonial de artistas e curadores, a descolonização institucional avança cada vez mais. A historiadora da arte inglesa, Claire Bishop, já ressaltou, em 2013, a necessidade de um processo de readaptação e transformação do museu para que seja capaz de suportar a arte contemporânea. Por esse ângulo, toda essa transição pela qual boa parte dos museus nacionais vem passando é algo a se pensar em relação a uma possível confirmação da previsão estipulada pela autora. O cunho militante e descolonial que a arte contemporânea nacional tomou para si, reivindica um processo de adaptação da instituição. Afinal, como uma vez Rodrigo Naves já pontuou, é a instituição que precisa dos artistas, e não eles que precisam de nós.
Finalmente, saliento que, ao falar de uma descolonização museal, não penso em uma descolonização restritiva. Ou, em outras palavras, uma descolonização ao modo de impedir eventos tais como a exposição de um artista europeu do cânone moderno, como Picasso ou Miró, em uma instituição brasileira. Falo aqui de uma descolonialidade amplificadora. De modo a, ainda que expondo um artista europeu, fazê-lo a partir de uma epistemologia, de um campo de conhecimento, que parte do nosso lugar.
Gabriel de Campos Barrera San Martin – Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador em estética e crítica de arte.
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