.Por Gabriel San Martin.

Se o tédio foi e vem sendo visto como algo em relação ao qual devemos escapar, Edward Hopper parece conceder um diagnóstico distinto em sua pintura.

(Woman in the Sun – edward hopper )

É, no mínimo, difícil falar de 2020 sem pensar no tédio que abrangeu esses últimos meses que constituíram a quarentena do novo coronavírus. Claro que, com isso, não me refiro a toda e qualquer pessoa. Acho importante enfatizar que não é qualquer um que tem o privilégio de sentir tédio. De todo modo, foi para muitos (e inclusive a mim) algo permanente a tentativa de lidar com o tédio do isolamento.

Pensar o tédio, de todo modo, não é um tema novo. Este, na verdade, foi um conceito de grande destaque no âmbito da filosofia existencialista dos séculos XIX e XX. Chegando mesmo a estabelecer-se enquanto um fundamento no sistema do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard – um pioneiro do existencialismo.

O tédio, para Kierkegaard, consiste em algo semelhante a um estado existencial no qual nada apetece. Uma condição em que falta qualquer significado na vida e essencialmente constituída por uma inclinação natural à vanidade. Da mesma forma que o filósofo francês Blaise Pascal vai sugerir, vendo no tédio um sentimento de abandono e insignificância, a tentativa de fuga constante dessa “tristeza insuportável”, Kierkegaard, não diferentemente, vai procurar maneiras de se livrar dessa disposição ao tédio.

(automat – edward hopper)

O interesse pelo subterfúgio em relação ao tédio manifestado por Kierkegaard e Pascal, todavia, adquire uma dimensão diferente na pintura de Edward Hopper. Aclamado por alguns como o grande pintor da pandemia da Covid-19, Hopper apresenta um modo distinto de pensar o tédio. Se Pascal e Kierkegaard viram com pessimismo esse isolamento, a pintura de Hopper parece, por outro lado, acoplar um otimismo acerca da condição tediosa.

Apesar de consistir em um sentimento de permanente inquietação, ansiedade e dúvida, o tédio do isolamento não manifesta, na pintura de Hopper, esses sintomas com apatia. Pelo contrário, as personagens figuradas em suas obras parecem, ainda que entediadas, ostentar um momento de aconchego acompanhado por um impulso introspectivo.

O filósofo alemão Theodor Adorno atribui à indústria cultural a responsabilidade de suprimir provisoriamente o tédio constante ao qual estamos submetidos – o que Pascal, de modo semelhante, atribui ao divertimento. Contudo, Adorno reconhece a natureza problemática e alienante do desdém sobre o tédio. Afinal, é nos momentos de tédio em que realmente refletimos e observamos atentamente ao ser, ao tempo e ao espaço. Em outras palavras, é nos momentos de tédio em que fazemos filosofia: e Hopper parece atentar-se, em sua pintura, a essa dimensão meditativa do tédio.

Ainda que isoladas, as personagens de Hopper aparecem ambientadas de modo convidativo. Na maioria das vezes, aconchegadas, atentas e reservadas. Em “A Woman in the Sun” (1961) e em “Automat” (1927), por exemplo, ambas as mulheres parecem confortáveis, pensativas e absortas. Essa concentração estampada nas personagens, todavia, não parece estar diretamente ligada a nenhuma tarefa em específico; mas somente a um momento de introspecção. Isto é, uma condição de ensimesmamento, de reflexão íntima.

Em “Woman in the Sun”, o foco de luz é inteiramente direcionado à personagem, que, nua e com um cigarro na mão, observa uma janela em silêncio. Diferente de Kierkegaard e Pascal, essa fonte de luz sobre a mulher entediada parece mais uma matriz de esperança em detrimento da rememoração de um pessimismo. O tédio, em Hopper, é também um momento de esclarecimento e reflexão, um momento de explicitação filosófica.

Embora um ano repleto de contratempos, Hopper lembra que 2020 foi também um ano de esclarecimento e introversão. Parece difícil, aos que tiveram o privilégio do tédio, que não tenham passado por um processo de ruptura drástica em relação às suas identidades e particularidades de um ano atrás. Chegando em 2021, enfim, recapitulo Belchior de que “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”.

Gabriel de Campos Barrera San Martin – Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador em estética e crítica de arte.