“ele morrendo pela primeira vez eu poderia ter certeza de que o presidente não estaria mentindo

.Por Alessandra Caneppele.

Muitas são as razões dos que desejam a morte do presidente: para que ele pare de desgovernar o país; para que ele aprenda radicalmente que a covid-19 não é uma gripezinha; para que ele sofra a morte que impiedosamente em toda a sua vida por inúmeras vezes desejou aos outros. Ou a desejam por pura raiva de uma pessoa abjeta.

(imagem pexels – pl)

Mas se eu tivesse que desejar a morte dele, o faria por uma outra razão: a morte é o mais radical de todos os acontecimentos e nos coloca diante de um real (aqui no sentido lacaniano) que não pode ser simbolizado. Nesse sentido, a morte é o evento paradigmático de nosso limite no uso das palavras para construir a realidade do modo como quisermos ou pudermos – ela limita assim nossa capacidade de contar histórias e … por extensão … nossa capacidade de mentir.

Ou seja, ele morrendo pela primeira vez eu poderia ter certeza de que o presidente não estaria mentindo – e, portanto, com a sua morte, ele enfim pararia de mentir!

E por aí chegamos ao avesso da reflexão sobre desejar ou não a morte do presidente: será que ele não está mentindo agora sobre a sua doença? E se ele já mentira antes ao dizer que não estava doente quando de fato estaria, agora ele é um homem já curado, que se sabe já imunizado e que, portanto, não vai morrer, mas que mente para todos que está enfrentando a doença para depois vociferar a todos que é forte e venceu a morte, mais uma vez, apesar de todos os que a desejaram para ele.

Se assim for, ao desejar a morte do presidente, ao invés de alimentar meu desejo de fim de suas mentiras, eu estaria alimentando justamente o contínuo bailar delas.

Portanto, se a razão de tal desejo for vê-lo confrontado com o impossível da mentira no limite da morte, parece melhor aguardar quieta sem nada desejar – pois, afinal, meu desejo não pode contribuir com sua morte, mas pode sim me enredar mais uma vez nessa cadeia de mentiras que tanto me repugna!

Ao invés, então, de desejar sua morte, prefiro conjecturar sobre o enredo das mentiras. A mentira expõe uma relação particular entre a palavra e a morte: o sujeito que mente sabe que nada liga o significante/palavra a um significado/mundo – ou seja, ele sabe que essa junção depende dele como sendo aquele sujeito que enuncia.

É um momento importante na vida da criança quando essa percebe que pode mentir – ela descobre ao mesmo tempo que há um espaço que separa a palavra do objeto e que um outro espaço separa também a sua cabeça daquela de seus pais (ao mentir ela mantém em sua mente algo que é diferente do que sabe estar na mente dos outros). Mas, para que possamos sustentar a fala que nos permite a vida social, é preciso que esse sujeito idealmente livre para inventar a sua própria linguagem se submeta ao regramento de uma língua e de uma moral que lhe digam: você não pode falar qualquer coisa.

No caso dos sujeitos de estrutura perversa, há uma negação desse limite. Como? Justamente através da recusa em reconhecer o limite que impõe uma morte, uma castração, ao seu desejo de falar qualquer coisa, ele se nega a ser marcado pela presença do mundo e da alteridade. Bolsonaro, mentiroso contumaz, é um exemplo paradigmático desses sujeitos que negam a experiência limite desse ponto no qual não se pode/não se deve mais mentir – experiência simbólica da morte do sujeito, que se retira/morre para que o outro nele viva.

Ora, já que ele não se curva à morte simbólica, que pelo menos se curvasse à real – assim traduziria o meu possível desejo. Mas, tal desejo nos captura como plateia no enredo do novo drible de Bolsonaro perante a velha senhora e sua foice – e, caso o golpe de sorte que, afinal, é a chegada da morte, não o atingisse, mortificado seríamos nós em nosso desejo e certamente não ele.

Melhor, então, é não reforçarmos com o nosso desejo o delírio negacionista presidencial, deixando nas mãos do encontro com o real do destino, onde de fato a morte pode operar, as nossas até agora vãs esperanças!