.Por Bruno Lima Rocha e Rafael Costa.
Introdução do quarto e último artigo da série
Até este episódio viemos apelando para a narrativa de fábula macabra, pois seria um risco jurídico muito grande escrever que a Terra é plana e dar nomes aos bois, incluindo sobrenomes e apelidos. Neste texto, a fábula só retorna na conclusão, e vamos nos valer do que circula de informação, conceitos e análises históricas recentes a respeito da complementaridade da economia política do crime, as estruturas de organizações criminosas como forma contemporânea de “acumulação selvagem” e os riscos reais consequentes da maximização dessas estruturas.
Pensando a partir da América Latina: perigos da expansão dos cartéis como complemento e fração de classe dominante incidindo nas cadeias de valor e nos tomadores reais de decisões
Infelizmente temos exemplos de sobra na América Latina, de organização territorial, através do controle das cadeias de valor da economia política do crime e, na complementaridade, entre o poder do Estado – em nível local – e o negócio do capitalismo ilegalizado. Recentemente, últimos cinco anos eu diria, ganhou popularidade no Brasil através de séries e novelas com produções associadas. No México e na Colômbia, com estilos de teledramaturgia diferentes – e desde já me alinho com a estrutura de trama narrativa colombiana, mais sutil e realista – a chamada “cultura narco”, “subcultura do narco” ou ainda “cultura pop do narco”, vem ganhando espaços e complexificando, cada vez mais, os modelos de negócios apresentados.
O perigo sempre presente desta complexificação pode ser acompanhado nas séries estreladas pela consagrada atriz mexicana Kate del Castillo, sendo que a segunda temporada da Rainha do Sul, para além de toda a caricatura, é o exemplo que tento descrever. Vamos indicar os perigos e apontar seus riscos reais.
Primeiro perigo (Perigo Tipo 1): o domínio territorial em frações de países, na geografia política ou na ciência política mais classificatória, os chamados “governos subnacionais”. Se em nível de municípios ou em estados inteiros, se numa região metropolitana, caso tenha o país algum tipo de administração de tipo microrregional; ou um arranjo consorciado. Isso é problema grande, de Tipo 1. Podemos definir esse Perigo Tipo 1 na presença histórica do Cartel de Medellín, com a associação da malandragem de Envigado com os senhores locais, daí a tríade de três familias: Escobar Gavíria (a de Pablo Emilio, o próprio) e da oligarquia local, com os Ochoa à frente e todos com respaldo dos Uribe Vélez (sendo um irmão ex-presidente e figura mais influente na direita colombiana, o Álvaro e seu irmão e pai sendo fundadores do paramilitarismo em forma empresarial, as Autodefesas Unidas da Colômbia, AUC).
Segundo perigo (Perigo Tipo 2): Quando o controle da economia política do crime implica em frações inteiras de um país associado à administração estatal, influenciando parte das carreiras políticas, parcelas importantes do sistema de defesa, de segurança e correcional (Ex. Forças Armadas, parcela das polícias, controle dos presídios) e atingindo diretamente o aparelho Judiciário (como com venda de sentenças, advocacia administrativa e compadrio burocrático). A “sorte” se dá quando há disputa entre carteis, com frações de classe dominante e elites dirigentes associando-se em oposição a outros setores. Isso reforça o domínio local e amplia o conflito para zonas inteiras. Sem exagero, podemos afirmar que este é o ponto do conflito dos carteis mexicanos no momento atual, mas que descende do fim do controle Priista (do longo período de mais de 70 anos do PRI no poder central) sobre a economia do narcotráfico e o consequente racha da Federação montada sobre a aliança Sinaloa-Jalisco, sob a batuta do ex-policial estadual Miguel Ángel Félix Gallardo, unificador dos carteis do país, com a bênção da DFS (a KGB do PRI, criada em 1947 e dissolvida em 1985 após o escândalo da morte do agente da DEA, Enrique Camarena Salazar, tema central da primeira temporada da série Narcos México 1), todos, com exceção do Cartel do Golfo, antigo Cartel de Matamoros, controlador até hoje do estado de Tamaulipas.
Terceiro perigo (Perigo Tipo 3): a soma de todos os males e a presença destes controles no comércio ilegal de longa distância, através do acesso às áreas privativas de portos com alguma capacidade de carga. Veracruz no México (no Golfo), porto de Buenaventura (Pacífico colombiano, litoral do departamento no Valle del Cauca, onde operavam os carteis de Cáli e depois os do Norte do Vale) e o acesso interno a entroncamentos rodoviários. O problema está na relação entre países e quando o volume de negócios traz tamanha liquidez que os bancos com capacidade de movimentação em escala transnacional começam a disputar esses depósitos. O caso mais escancarado é o do finado BCCI, mas bancos que nasceram com o narcotráfico nunca esquecem, tal é o caso de importantes agências do HSBC lavando para os Zetas e o Cartel de Sinaloa em plena Nova York (ver este link: https://www.proceso.com.mx/429555/demandan-a-hsbc-en-eu-por-permitir-lavado-de-dinero-para-el-narco) e centenas de casos mais. Quando o volume de dinheiro advindo do narcotráfico e atividades correlatas e ilegais injeta liquidez e implica até na sustentabilidade de uma economia inteira – no auge do narcotráfico a liquidez colombiana era garantida pelo envio de dinheiro sonante dos EUA para a Colômbia, através dos ganhos com o varejo do narco nas metrópoles mais viciadas do planeta no Hamburguestão.
Caberia ainda debater o Perigo Tipo 3 em termos absolutos em Honduras. O irmão do presidente ilegítimo Juan Orlando Hernández (JOH), Tony Hernández foi preso nos Estados Unidos e réu confesso, involucrou a todo o governo do JOH (ver este link: https://elpais.com/internacional/2019/10/18/actualidad/1571420844_713692.html). Hernández alterou a Constituição de próprio punho, avançou em medidas ultraliberais, fraudou as eleições onde foi reeleito e ainda foi formalmente acusado de operar junto a uma filial do Cartel de Sinaloa, o cartel dos Chang com base na vizinha Guatemala. Para tal, unidades inteiras do exército hondurenho, o mesmo que deu o golpe de Estado em 2009 com aval da Suprema Corte e foi logo reconhecido pela chancelaria gringa no primeiro governo Obama, operava para o narcotráfico. Cobrança de tributo sobre a economia ilegal (derecho de piso em escala nacional) e enriquecimento dos altos mandos faz com que a força contrarrevolucionária treinada na Escola das Américas seja o pilar da economia do crime. O Departamento de Estado já sob governo Trump finge que não vê nada, a DEA opera pouco no país e segue a punição seletiva conforme as conveniências da administração de turno no Império da Gringolândia.
O Rio de Janeiro, Perigo Tipo 1 e ampla expansão da complexidade
Poderia seguir nos exemplos, mas ressalto que tudo isso, tudo mesmo, está em disputa hoje na Zona Oeste do rio de Janeiro e o Arco Metropolitano com a Baixada Fluminense. Se o consórcio de milícias de parapoliciais controlar realmente uma parte do Porto de Itaguaí não será uma metástase, mas sim uma fábrica cancerígena de enormes proporções. Se o acesso aos postos de controle rodoviários for apenas parcialmente controlado por forças associadas das “milícias de paramilitares” e destes chegarem a um terminal de contêineres, a distribuição faz o elo costa do Sudeste, interiorização e distribuição internacional. Indo e vindo.
Se alguém apenas julgar “exagerada” nossa preocupação, sugiro assistir a essa entrevista com Luiz Eduardo Soares (ver este link: https://www.youtube.com/watch?v=yofUUypLTj4&t=36s) assim como também essa entrevista com o professor da UFRRJ José Cláudio Souza Alves (ver este link: https://www.youtube.com/watch?v=DRiJyrPceGI&t=1550s). O professor Souza Alves é o maior especialista no tema das milícias de parapoliciais tanto no Rio de Janeiro (antiga Guanabara) assim como na Baixada Fluminense. Para acompanhar o dia a dia do combate às bandas e facções de parapoliciais, é surpreendente o perfil da Delegacia de Repressão ao Crime Organizado – Inquéritos Especiais (DRACO-IE, Polícia Civil do estado do Rio).
A fábula macabra: o esquema termina no senador Gelatina e o clã dos FA, ou começa?
Voltando ao Arroio de Fevereiro, sempre lembrando que é melhor prevenir do que remediar e que a Terra continua redonda, nos perguntamos se o esquema que envolve a seguinte fórmula:
Rachadinha de gabinete na Assembleia + multiplicação do patrimônio imobiliário + subavaliação dos mesmos imóveis (magros na compra e gordos na venda) = capitalização e lavagem das Milícias de Parapoliciais.
Se for esta a fórmula, logo o emprego de parentes diretos de perigosos operadores do crime no nexo policial-paramilitar é a ponta de um esquema que pode se nacionalizar caso os aliados do clã dos Fascistas Arrivistas realmente tiverem o controle sobre rodovias interligadas e áreas portuárias (de desembarque) e retro portuárias (para escoamento). Assim, o domínio territorial na Zona Oeste e na Baixada – em esquema coligado pelo visto, mas ainda que exista concorrência entre outras facções de paramilitares – incide na capacidade extratora que, nos tempos modernos, majoritariamente pertence aos aparelhos de Estado. Isso caracteriza um Estado falido em nível subnacional com vínculos diretos ao Poder Executivo da vergonhosa República Bananisteira sob o desgoverno da extrema direita alinhada com o ultraliberalismo econômico.
Daí o nexo do Perigo Tipo 1, modalidade mais comum no Arroio de Fevereiro, sendo entreverado com outros perigos aqui narrados, pulando de 1 para 3 através justamente da capacidade de intermediação. Uma vez arraigado, é possível nacionalizar o modelo, já que o papai do tremelique tem adeptos acéfalos em todo o Bananistão. O alerta é pela gravidade da situação e a complexidade do modelo de parapolicialismo. Toda atenção é pouca e toda e qualquer denúncia se faz urgente e necessária.
Bruno Lima Rocha é editor dos canais do Estratégia & Análise, a análise política para a esquerda mais à esquerda. Rafael Costa é desenhista e cartunista (E-mail- Rafael.martinsdacosta@yahoo.com.br. Instagram- @chargesecartuns )
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