Se esperarmos o agronegócio, morreremos de fome: população em quarentena quer alimentos e não commodities!

.Por Lucas G. Lima.

Em meio à pandemia, que tem vitimado diariamente milhares de indivíduos expostos ao coronavírus, uma questão salta aos olhos: quem garantirá a alimentação das pessoas durante a quarentena? No Brasil, onde mais de 5 milhões de pessoas passam fome (FAO, 2019) e quase 40 milhões vivem na informalidade (IBGE, 2020), essa é uma questão prioritária!

(foto ag brasil – arq )

Os grandes meios de comunicação, como de costume, elegeram o agronegócio como resposta a essa questão, apontando-o como uma peça-chave para prover com alimentos milhões de pessoas em insegurança alimentar e apartadas do convívio social. Faltaram combinar, entretanto, com o agronegócio. Desde as primeiras medidas governamentais de contenção do coronavírus, os diferentes setores do agronegócio brasileiro têm se movimentado para proteger seus negócios. Repito: proteger seus negócios.


Um boletim publicado pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA), e divulgado em 28 de março de 2020, ilustra nossa exposição. Nele, a CNA resume o quadro momentâneo dos principais segmentos do agronegócio: menciona os exportadores de soja, milho e café (beneficiados com a valorização momentânea dos preços desses itens e com a disparada do dólar) e lamenta as dificuldades de escoamento para o exterior de frutas, em face das restrições de circulação de voos em vários aeroportos pelo mundo. Também nos deixa informados que pecuaristas estão retendo o gado em suas fazendas para evitar a queda do preço da carne bovina.

Em poucos parágrafos do boletim, a tônica do agronegócio é: assegurar lucros e proteger negócios. Um leitor mais atento pode retrucar a mim e mencionar que a expressão “garantir alimentos seguros à população” aparece uma vez no texto. Sim, aparece, mas não esqueçamos que no universo vocabular do agronegócio, alimento e combate à fome são meros recursos de retórica, num jogo de encenação pública por meio da qual constrói sua própria hegemonia, conforme já tratou Chã (2018), em importante pesquisa sobre o tema.


Para os capitalistas que manejam o agronegócio, o destino da soja, da carne e/ou do milho pouco importa! O importante é que sejam vendidos e a reprodução do capital não cesse! Por isso, carregam o pomposo nome de commodities, ou seja, incontestes mercadorias.

Diga-se de passagem, Marx (2008) já havia advertido acerca dessa indiferença do capitalista quando, em uma determinada passagem de O Capital, alertou que a agricultura é explorada pelos capitalistas e que estes somente se diferenciam dos demais (capitalistas) em função do setor em que aplicam seus investimentos. Não é mero acaso que a Bayer, uma das gigantes empresariais do agronegócio mundial, possua em sua carteira de produtos sementes, venenos (também denominados de agrotóxicos) e fármacos.

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Faz-se mister mencionar que a constituição da hegemonia do agronegócio no Brasil baseou-se, entre outras determinações (fartos subsídios estatais e apropriação crescente e monopólica de bens naturais), no enfraquecimento da capacidade do Estado de incidir nas questões que afetam a soberania alimentar.

A vigência do neoliberalismo no país – e sua absurda cartilha de privatização geral – desmontou os mecanismos necessários para se assegurar a oferta e a distribuição pública e permanente de alimentos a um preço razoável.

Um indicativo importante do quadro que descrevemos é a quase inoperância da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), e de outras empresas públicas responsáveis pelos estoques de alimentos, em meio à crise pandêmica do Coronavírus. Solapadas há décadas pelo neoliberalismo, essas se mostram incapazes de oferecer respostas rápidas à possível escassez e aumento dos preços de itens básicos de nossa alimentação.

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Em outras palavras, o apoio irrestrito ao modelo do agronegócio negligenciou a manutenção das reservas públicas de alimentos, transferindo ao capital uma questão estratégica ao país. Uma opção que pode custar caro, no sentido literal da palavra, afinal, os estoques públicos, nesse momento de crise, poderiam ser usados para evitar a disparada de preços de itens importantes dos alimentos, através da adição coordenada de gêneros disponíveis em estoque.


Os gráficos 1, 2 e 3 ilustram a queda das reservas públicas de arroz, feijão e milho no Brasil. Os dados foram contabilizados no mês de dezembro de cada ano. No gráfico 1 a queda do estoque de arroz é impressionante. Em 20 anos houve uma redução de quase 99% do cereal mais consumido do país. O gráfico 2 aponta uma queda do feijão. Nota-se que os estoques públicos da leguminosa estão zerados desde 2016. A grave situação também está registrada nos estoques de milho. No gráfico 3 consta uma substancial redução das reservas desse gênero na ordem de 99%.

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Salientamos que a queda nos mencionados estoques não representa, necessariamente, queda na quantidade produzida. Observando o gráfico 4, identifica-se que as produções de arroz e de feijão mantiveram, praticamente, o mesmo volume registrado em 1995, apresentando, ambas, apenas um discreto crescimento. Por sua vez, o milho cresceu extraordinariamente, passando de menos de 40 milhões de toneladas, em 1995, para mais de 80 milhões de toneladas, em 2018, um crescimento de mais de 126%.

Esse estrondoso crescimento do milho tem, claro, uma explicação: como se trata de uma commodity, negociada no mercado futuro das bolsas de valores e apreciada pelas megacorporações de grãos, como a Cargill e a Bunge, contou ao longo dos anos com investimentos dos empresários do agronegócio, que ampliaram as toneladas produzidas, a fim de atenderem o financeirizado comércio de grãos. Não se trata, portanto, de mais milho destinado às nossas refeições, mas de milho tratado como mera mercadoria e destinado, sobretudo, à exportação. O gráfico 5 exibe o crescimento das exportações de milho pelo Brasil. Num intervalo de 11 anos foi registrado um aumento de 450% nas toneladas enviadas a outros países.

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Em resumo, os dados e as informações apresentados confirmam que houve fragilização do controle sobre as reservas públicas de nossa alimentação, bem como uma relativa estagnação da produção de arroz e feijão. Por outro lado, há uma maior produção de milho, mas esta não tem como propósito atender as nossas expectativas de alimentação, senão, fazer girar a roda da economia capitalista.


É preciso fortalecer a agricultura camponesa e de povos tradicionais

A disseminação da pandemia em terras brasileiras acendeu o sinal de alerta, haja vista que a soberania alimentar foi rifada ao longo de décadas. Seguramente, não será o agronegócio o responsável por assegurar a provisão de alimentos à população brasileira. É o momento de exigir o imediato abandono da política neoliberal no país, cobrando um conjunto de medidas para o campo brasileiro.

Consideramos que a agricultura camponesa e de povos tradicionais, se incentivada e apoiada, tem plenas condições de oferecer alimentos em quantidade adequada. Melhor, esses sujeitos podem ofertar uma rica diversidade de cereais, leguminosas, oleaginosas, carnes e frutas, provenientes de práticas agrícolas talhadas numa relação equilibrada e respeitosa com a natureza.

Nesse sentido, é fundamental que o governo federal e os estados adotem, em caráter de urgência, as seguintes medidas:

a) Realização imediata de reforma agrária, assentando milhares de famílias que ainda se encontram acampadas e/ou em situações de extrema pobreza nas periferias das cidades;

b) Demarcação territorial das terras indígenas e quilombolas, com garantia de pleno controle dos mesmos sobre os bens da natureza presentes em seus territórios;

c) Apoio financeiro, com variados subsídios, para aumento da oferta de alimentos por parte da agricultura camponesa e de povos tradicionais;

d) Investimentos na Conab e em empresas estaduais de estoques públicos para que as mesmas gozem de centralidade na questão da oferta de alimentos e controle de preço;

e) Fortalecimento do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), a fim de assegurar que estes atuem como importantes veículos de fomento de alimentos;

f) Apoio logístico para assegurar o transporte de alimentos dos estabelecimentos rurais às feiras, aos mercados públicos e às casas de famílias vulneráveis socioeconomicamente, eliminando e/ou diminuindo o famigerado controle monopólico da distribuição, que tanto encarece os alimentos;

g) Fim imediato dos subsídios à exportação de commodities, coibindo-se a retenção especulativa de alimentos;

h) Apoio financeiro e logístico à produção agroecológica, com a criação de territórios livres de transgênicos e agrotóxicos;

i) Fim das isenções tributárias sobre agrotóxicos.

Lucas G. Lima é professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Alagoas.

Referências:

BRASIL. Companhia Nacional de Abastecimento. Disponível em: <https://www.conab.gov.br/estoques/estoques-por-produto?start=10> Acesso em 5 abr. 2020.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: <https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pam/tabelas> Acesso em: 6 abr. 2020.

BRASIL. Ministério da Indústria e Comércio Exterior. Disponível em: <http://comexstat.mdic.gov.br/pt/comex-vis> Acesso em: 6 abr. 2020.

CHÃ, Ana Manuela. Agronegócio e indústria cultural: estratégias das empresas para a construção da hegemonia. São Paulo: Expressão Popular, 2018.

CNA. Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil. Coronavírus Boletim 23 a 27/3. Disponível em: <https://www.cnabrasil.org.br/noticias/boletim-cna-impactos-do-coronavirus>

FAO. Food and Agriculture Organization of the United Nations. The state of food security and nutrition in the world. Disponível: <http://www.fao.org/3/ca5162en/ca5162en.pdf> Acesso em: 6 abr. 2020.

MARX, Karl. O capital: crítica de economia política. Livro III. Rio Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

Este texto é parte de uma série de boletins sequenciais sobre o coronavírus e Ciências Sociais. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM).