Da Redação do Vi o Mundo, sugerido por Aurélio Fernandes Alonso

Sylvio Couto Coelho da Frota foi um general brasileiro que pretendia ser escolhido presidente na sucessão do ditador Ernesto Geisel (1974-79). Geisel promoveu a abertura “lenta, gradual e segura” articulada por um dos criadores do Serviço Nacional de Informações, o SNI, Golbery do Couto e Silva.

João Cezar de Castro Rocha (foto de vídeo – youtube)

A abertura pôs fim à ditadura militar, que governou o Brasil de 1964 a 1985.

Golbery argumentava que, diante da crise econômica e da pressão da sociedade civil, os militares deveriam se retirar da cena política tendo controle sobre o processo.

Foi o que permitiu a aprovação da chamada “anistia ampla, geral e irrestrita”, que evitou a punição de militares que torturaram e desapareceram com adversários políticos.

Sempre acreditei, pelo passado histórico, que comunistas são seres alienados, sonsos, insensíveis e insensatos. General Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, sobre o governador do Maranhão Flávio Dino. Heleno, quando capitão, foi ajudante de ordens de Sylvio Frota.

Geisel demitiu Frota no dia 12 de outubro de 1977.

O grupo ligado a Frota sabotou o processo de abertura, tendo envolvimento, por exemplo, no fracassado atentado a bomba do Riocentro, no Rio de Janeiro (1981).

Agora, o professor João Cezar de Castro Rocha, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) acredita ter chegado ao livro inspirador do bolsonarismo, que embala as viúvas de Sylvio Frota.

O professor explicou, numa entrevista ao Jornal Opção, de Goiânia, que reproduzimos parcialmente abaixo:

“O verbo dominante nos vídeos dos intelectuais bolsonaristas é eliminar. E o substantivo é limpeza”

Professor doutor da UERJ diz que guerra cultural bolsonarista vem de “tradução inesperada, de consequências funestas”, da doutrina de segurança nacional da Escola Superior Militar

“As pessoas não levam a sério a guerra cultural bolsonarista.” O tom é de alerta.

É essa mesmo a intenção do professor doutor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), João Cezar de Castro Rocha, que trabalha na conclusão de um livro sobre o que chama de guerra cultural bolsonarista.

“É uma guerra cultural que fala dois idiomas”, explica.

De acordo com as hipóteses levantadas pelo professor titular de Literatura Comparada, doutor em Letras pela UERJ e Literatura Comparada pela Stanford University, nos Estados Unidos, a destruição das instituições e a eliminação simbólica do inimigo interno são pontas de lança do projeto autoritário do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Castro Rocha afirma: “Há um ressentimento enorme. Há um revanchismo evidente. Há um desejo de destruir todas as instituições que caminharam no sentido do fortalecimento da democracia e da salvaguarda das instituições”.

E tudo parte de um livro secreto escrito pelos militares a partir de 1986 sob o comando do então ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves.

De onde parte o que o sr. chama de guerra cultural na estrutura do governo Bolsonaro?

Minha ideia surgiu de uma perplexidade. Em um primeiro momento, provavelmente todos nós ficamos muito surpresos com o nível praticamente caricatural de várias áreas no governo.

Declarações que pareciam a princípio estapafúrdias da ministra Damares Alves [Mulher, Família e Direitos Humanos], do ministro Ernesto Araújo [Relações Exteriores], do primeiro ministro da Educação [Ricardo Vélez Rodríguez], depois do segundo [Abraham Weintraub] e do ministro Ricardo Salles [Meio Ambiente].

Havia um conjunto de declarações que parecia tão descolado da realidade que de fato conformava uma espécie de Brasil paralelo. Mas essa explicação não me satisfazia.

Me parece que é um grave problema, porque nós temos uma tendência a reduzir essa situação gravíssima que vivemos à caricatura. O que proponho é passar da caricatura à caracterização.

Isto é, tentar compreender a guerra cultural bolsonarista na sua própria dinâmica. Tentar entender qual é sua fonte, qual é a origem desse pensamento, quais são as dinâmicas que lhe são próprias.

Há um equívoco quando reduzimos a guerra cultural a uma caricatura. Estamos, em uma boa medida, imaginando que a guerra cultural bolsonarista é comparável às guerras culturais que ocorrem nos Estados Unidos e na Europa há mais de uma década.

A hipótese que proponho é bastante diferente. Proponho deixar de se relacionar com este modelo de guerra cultural, que na Europa e nos Estados Unidos tem de 15 a 20 anos. Já no século XIX na Alemanha houve a “Kulturkampf” [a batalha pela cultura].

Nesses casos, em geral, o que ocorre é uma total disputa de valores, de um lado progressistas, de outro conservadores. De um lado uma visão de mundo de esquerda, de outro uma visão de mundo de direita, e assim sempre.

No caso da guerra cultural bolsonarista, que não deixa de ter contato com esse tipo de modelo, proponho, a partir do estudo aprofundado que tenho feito, que o modelo da guerra cultural bolsonarista tem uma característica muito própria, muito relacionada à história recente brasileira e é a incapacidade que temos de compreender isso que não nos permite reagir a tempo para o que creio que pode ser um momento inédito no Brasil em termos de ruptura e, sobretudo, em termos de paralisação da administração pública.

Em um dos artigos publicados recentemente, o sr. faz comentários sobre o documentário “1964 – Brasil Entre Armas e Livros”, do Brasil Paralelo. O sr. diz que o filme faz uma revisão da história da ditadura militar de 1964 a 1985 sob o aspecto de que os militares teriam combatido a luta armada, mas não teria combatido os livros, a cultura e a educação. Onde nasce essa construção de ameaça constante do comunismo no Brasil e até onde ela vai?

Essa é a pergunta-chave. Só sou capaz de partir para uma nova hipótese porque acredito que descobri a resposta. Não nego que a guerra cultural bolsonarista se relacione com as guerras culturais que ocorrem hoje no mundo. Mas digo que isso está apenas na superfície.

É muito mais na técnica de utilização da trolagem, do uso sistemático do WhatsApp. Mas o conteúdo da guerra cultural bolsonarista é arraigadamente ligado a uma concepção revisionista da ditadura militar.

Essa concepção tem um documento. E eu descobri o documento.

A guerra cultural bolsonarista realiza, de um lado, uma tradução inesperada, de consequências potencialmente funestas, da doutrina de segurança nacional que foi desenvolvida durante a ditadura.

Mas, mesmo antes, pela Escola Superior de Guerra. A doutrina de segurança nacional adaptou o direito internacional público para o caso brasileiro. Na doutrina de segurança nacional, uma vez identificado o inimigo não há dúvida: é necessário eliminá-lo.

A guerra cultural bolsonarista tem muito pouco a ver com cultura como nós entendemos e tem muito a ver com a concepção militar da doutrina de segurança nacional de eliminação do inimigo interno.

Se você fizer o trabalho mínimo de assistir a alguns vídeos de intelectuais bolsonaristas, o verbo dominante é eliminar. E o substantivo dominante é limpeza.

É um vocabulário retirado diretamente do golpe militar de 1964.

Como traduzir em um ambiente democrático a doutrina de segurança nacional se a democracia necessariamente implica o contraditório e estar exposto à diferença?

Em 1985, depois de um trabalho de seis anos, foi publicado no Brasil um livro que marcou época chamado “Brasil: Nunca Mais”.

Seria o livro negro da ditadura militar. De maneira secreta, um grupo de pesquisadores compilou aproximadamente 5 mil páginas de documentos do Superior Tribunal Militar (STM) com processos de subversivos e guerrilheiros.

Portanto, todos os documentos que fazem parte do projeto “Brasil: Nunca Mais” foram produzidos pela ditadura militar.

Os pesquisadores compilaram uma seleção dos documentos de modo a denunciar para a sociedade brasileira a tortura, o assassinato e o desaparecimento político.

Eu tinha 20 anos quando o “Brasil: Nunca Mais” saiu. Foi uma revolução na sociedade brasileira. Ficaram comprovadas de uma maneira muito clara todas as arbitrariedades e a violência da ditadura militar.

No ano seguinte, sob a liderança do ministro do Exército do governo José Sarney (MDB), que era o general da linha dura Leônidas Pires Gonçalves, um grupo de militares resolveu revidar.

Resolveu, a seu modo, escrever outro livro. Já que o “Brasil: Nunca Mais” se tornou o livro negro da ditadura militar, os militares comandados pelo Leônidas Pires Gonçalves decidiram escrever o livro negro da luta armada, isto é, o livro negro da esquerda.

Os militares compilaram material e documentos, sobretudo do serviço de informação da Marinha, do Exército, da Aeronáutica e do Serviço Nacional de Informação (SNI), organizaram dois volumes de aproximadamente mil páginas e queriam publicar o livro. Seria a resposta do Exército ao “Brasil: Nunca Mais”.

José Sarney, em 1989, vetou a publicação temendo a radicalização e a polarização que daí poderiam surgir.

A partir deste momento, algumas cópias produzidas manualmente circularam entre oficiais de alta patente e poucos militantes de direita.

Até que um jornalista, Lucas Figueiredo, especialista na comunidade de informação brasileira, autor do mais importante livro sobre o SNI, “Ministério do Silêncio”, descobriu e teve acesso ao livro. O projeto dos militares se chamava “Orvil”.

Livro de trás para frente.

Realmente é um livro de trás para frente porque é um livro que procura inverter completamente o “Brasil: Nunca Mais”.

Porque se o “Brasil: Nunca Mais” era o livro negro da ditadura militar, o “Orvil” era o livro negro da esquerda. Da luta armada em particular.

O “Orvil” compila em suas mil páginas documentos que mostram a morte de civis em ações da luta armada, que considera que todos os guerrilheiros eram terroristas, que não lutavam pela democracia. E fazia a compilação sistemática desses documentos.

Depois, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra aproveitou esse material para publicar o seu livro.

Que é o “A Verdade Sufocada”?

Isso. Lucas Figueiredo descobriu o “Orvil”, que agora se encontra disponível. Hoje, o leitor do Jornal Opção, se colocar no Google “Verdade Sufocada” chega ao “Orvil” e pode baixar a versão fac-similar. É uma leitura surpreendente.

Primeiro porque mostra, pela visão do Exército, como foi a luta armada. É interessante para quem tem preocupação com o período.

Além da compilação de documentos e de fatos, os militares procuram mostrar que a esquerda da luta armada, na concepção do Exército, era terrorista e provocou tantos assassinatos e tantas mortes quanto o próprio Exército. É uma interpretação. Uma narrativa.

Tem uma linha narrativa que procura interpretar a história republicana brasileira a partir da década de 1920.

O que vou dizer aqui é exatamente o que dizem os ideólogos do presidente, exatamente o que diz o ministro da Educação, exatamente a base do documentário e a estrutura de pensamento da produtora de conteúdo audiovisual, Brasil Paralelo.

Eis o fundamento de toda ação deletéria deste governo para destruir as instituições. Desde o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], que teve a sua estrutura de fiscalização desmontada, até a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior], que está sendo destruída passo a passo.

A narrativa que o “Orvil” propõe é que o século XX brasileiro assistiu a uma investida constante do movimento comunista internacional para impor ao Brasil uma ditadura do proletariado.

É uma narrativa delirante. É uma teoria conspiratória, simplesmente absurda. Segundo o “Orvil”, houve três momentos fracassados.

O primeiro foi a fundação do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que assim se chamava em 1922, e a Intentona Comunista de 1935. Primeiro momento derrotado militarmente pelo Exército brasileiro.

O segundo momento começaria após o suicídio de Getúlio Vargas e se prolongaria até o golpe militar de 1964. E, de novo, a tentativa teria sido derrotada militarmente.

O terceiro momento seria o da luta armada, entre 1968 e 1974. Nas cidades, a luta armada terminou em 1972. Destaca-se 1974 porque nesse ano os últimos guerrilheiros do Araguaia são assassinados pelo Exército. Não são feitos prisioneiros, são eliminados em fidelidade à doutrina de segurança nacional.

Ainda em 1974 o presidente Ernesto Geisel começou a desmobilizar o aparato repressivo, o que explica o ressentimento que se encontra na base do “Orvil”.

Assim também se esclarece a narrativa conspiratória do quarto e derradeiro momento.

Dentro da criação do que o sr. chama de uma narrativa delirante dos ideólogos e membros do governo Bolsonaro de que havia de fato uma ameaça de tomada do poder pelos comunistas…

Constrói-se uma narrativa de que haveria no Brasil uma real possibilidade de estabelecimento de uma ditadura do proletariado, que seria uma espécie de China da América Latina, dada a dimensão continental e a importância do País no continente. Era o que eles diziam.

Diz o “Orvil” que em 1974 começou a quarta fase, o momento “mais perigoso”.

Na narrativa dos militares do Exército, em 1974, a esquerda, derrotada militarmente mais uma vez, mudou de rumo e decidiu adotar a técnica gramsciana, que os incultos da guerra cultural bolsonarista, em hostilidade constante com a língua portuguesa, insistem em dizer “gramscista”, teria se infiltrado na cultura, acima de tudo nas universidades e nas artes, para a médio prazo tomar o poder.

Essa é a explicação do “Orvil”.

Em outras palavras, a esquerda triunfou somente quanto o aparato repressivo foi desativado!

Culpa, pois, da distensão proposta por Geisel…

O “Orvil” é uma peça de defesa para evitar a acusação!

Se você analisa o discurso do ministro da Educação, do presidente Jair Bolsonaro, do Olavo de Carvalho, de seus seguidores e dos bolsonaristas abduzidos pela guerra cultural, toda estratégia retórica vem do “Orvil”.

Vem do “Orvil” a fonte da concepção de mundo do bolsonarismo.

A guerra cultural bolsonarista retoma literalmente os termos do projeto secreto do Exército e tenta transformá-lo em política pública. O resultado para o País será desastroso.

Quando o “Orvil” trata do que seria a quarta fase na narrativa militar a respeito da ditadura, por que Antonio Gramsci e também a Escola de Frankfurt preocupam tanto o bolsonarismo e o novo conservadorismo brasileiro?

Se estou certo, esta é a guerra cultural bolsonarista, não a outra. A intenção é eliminar o inimigo interno. E o inimigo interno é qualquer um que não seja bolsonarista.

E mais. O bode expiatório é o esquerdista, o movimento comunista internacional, globalista no idioleto da guerra cultural.

Em um ambiente democrático não se pode fazer o que a ditadura militar fez, que era prender, torturar, assassinar e desaparecer corpos — e o presidente negou recentemente que tenha havido tortura durante a ditadura, o que é um absurdo completo.

Há até relatório do general Ernesto Geisel que reconhece a existência de tortura. Relatório encomendado por Castello Branco, primeiro presidente da ditadura militar. Isso é um fato histórico.

Como não é possível mais eliminar fisicamente os adversários, enquanto conseguirmos defender a democracia, o que o bolsonarismo faz por meio das milícias digitais é tentar eliminar simbolicamente. Isso tem sido feito desde o início do governo.

Fez-se com Hamilton Mourão (PRTB). O vice-presidente foi enquadrado. Foi feito com Gustavo Bebianno [ex-secretário-geral da Presidência da República]. Sem Gustavo Bebianno, Bolsonaro não teria sido sequer candidato. Quem defendeu Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF) foi Gustavo Bebianno. Quem conseguiu o partido foi Gustavo Bebianno. Quem montou a estrutura de campanha foi Gustavo Bebianno. Ele foi eliminado simbolicamente. (Do VioMundo)