Pandemia, meritocracia e racismo estrutural
.Por Ricardo Alexandre Corrêa.
Não colem esse discurso da meritocracia em mim (Conceição Evaristo)
Normalmente, o reconhecimento de males enraizados na sociedade somente acontece quando alguma catástrofe o evidencia. Nesse sentido, a pandemia da Covid-19 desnudou a pobreza e a miséria que devastam o maior estrato da sociedade brasileira – composto por pretos e pardos. O racismo estrutural existente no Brasil está escancarado.
Mas essas questões nunca foram novidades. A população negra denuncia há anos a exclusão social e pressionam o Estado para o provimento de políticas públicas que possibilitem o acesso aos direitos sociais, a valorização da cultura negra e medidas que possam reparar os séculos de escravidão. No entanto, o Estado ignora os apelos desenvolvendo políticas excludentes e permitindo que milhares de vidas negras sejam perdidas ou sobrevivam desesperançadas.
Os negros sempre estiveram expostos a obstáculos amparados por narrativas que caracterizam a sociedade brasileira como modelo de democracia racial, considerando os indivíduos de diferentes raças se relacionando harmoniosamente e com acesso igualmente as oportunidades e direitos sociais.
Mas isso é uma falácia que esconde o racismo estrutural e impede o avanço das pautas que servem aos interesses dos excluídos. Em nenhum momento da história nacional houve sequer uma paridade de participação dos negros nas estruturas de poder e no acesso aos direitos sociais, a marginalização se tornou nossa morada involuntária. Diferente da população branca, historicamente, carregada de privilégios da raça.
Concorrente a democracia racial, estabeleceu-se o discurso da meritocracia1, a crença de que somente com esforço os indivíduos são recompensados. Desse ponto de vista, as desigualdades sociais podem ser justificadas, oras “os pobres não se esforçaram o suficiente”. Mas isso é confortável às pessoas brancas, pois a cor da pele não lhes oferece impeditivo algum nas relações sociais.
A meritocracia está subjacente no processo de formação dos indivíduos. Muitas famílias ao educarem os filhos oferecem alguma vantagem/presente para que tenham comportamento exemplar, ou castigos quando contrariam as expectativas.
Os negros desde jovens ouvem que precisam ser duas, ou mais vezes, melhores que as pessoas brancas para “ser alguém na vida”. Nas instituições escolares, também, notamos práticas que fortalecem o espírito da meritocracia. O condicionamento operante2 tornou-se um instrumento pedagógico universal: entregue a resposta correta ou o trabalho escolar, e ganhe um ponto positivo; não entregue, e seja punido com um ponto negativo.
Todos esses exemplos são excludentes, pois não consideram as desigualdades e as particularidades das pessoas. O racismo, a classe econômica, as condições subjetivas e materiais, e a influência do ambiente na formação dos indivíduos são ignorados.
Ademais, a vivência dos negros é tecida com a raça sendo elemento central, portanto, qualquer atributo positivo que tenham não consegue superar o racismo. Mesmo porque ainda estamos lutando para sermos reconhecidos como humanos, combatendo estigmas e estereótipos; meritocracia em nossas vidas é, meramente, uma anedota.
Com o racismo estrutural exposto, uma parcela da sociedade que não vivencia o sofrimento está estarrecida. A urgência dos governos em prover assistência às populações marginalizadas não cabe mais desculpas. A Covid-19 está avançando e matando; os negros pedem socorro. Não temos condições seguras de isolamento social como orienta as autoridades de saúde pública, nem renda para manter as necessidades básicas de sobrevivência.
Estamos presenciando o retrocesso educacional das crianças e jovens que refletirá no decorrer da vida escolar − estudos remotos com acesso à internet e ambiente adequado para estudos inexiste. Infelizmente as expectativas não são otimistas para o futuro.
Se o racismo estrutural tivesse sido devidamente enfrentado, com certeza estaríamos num outro patamar de combate à pandemia. Todavia, ainda podemos construir uma nova sociedade, a começar pela abolição da crença na meritocracia e apostando no desenvolvimento de políticas que eliminem as desigualdades sociais e raciais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. [1936]. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984.
PORTAL NEXO JORNAL. O livro que criou o termo ‘meritocracia’ é uma distopia. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/11/06/O-livro-que-criou-o-termo-%E2%80%98meritocracia%E2%80%99-%C3%A9-uma-distopia>. Acesso em: 21 mai.2020
1 O termo meritocracia tem origem no livro “The rise of the meritocracy” (1958), do autor Michael Young.
2 Conceito-chave do psicólogo behaviorista B. F. Skinner, o condicionamento operante é um mecanismo que premia a resposta dos indivíduos até que fiquem condicionados com esse processo. Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/1917/b-f-skinner-o-cientista-do-comportamento-e-do-aprendizado>. Acesso em: 23 mai. 2020