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A crônica de um genocídio

COVID-19 e Brasil: a crônica de um genocídio

.Por Sandro Ari Andrade de Miranda.

O termo genocídio passou a ser utilizado de forma mais comum por jornalísticas e pelas ciências sociais depois do holocausto nazista que mandou milhões de judeus, ciganos, homossexuais, comunistas e deficientes físicos para campos de concentração e câmaras de gás. No entanto, este não é o único exemplo histórico de genocídio.

(foto: paulo desana – dabakuri -amazônia real)

Temos o massacre de 2/3 da população dos povos originários das Américas durante o período da colonização, seja pela violência, seja pela disseminação de doenças desconhecidas, o assassínio dos povos africanos por europeus e as consequências de diversas guerras fratricidade travadas por interesses econômicos ou de fronteiras. A busca de poder, de riquezas e o descaso com as vidas daqueles considerados como descartáveis por governantes são traços comuns em todos estes processos.

No Brasil, o termo genocídio também não é muito utilizado nos registros dos liros de história, mas práticas genocidas são mais comuns do que parecem e normalmente estão associadas a ideologias e comportamentos políticos. Por sinal, a eleição de Bolsonaro para a Presidência da República foi acompanhada de vários elementos discursivos que indicavam um comportamento genocida, tais como a defesa intransigente da liberação do comércio de armas, de uma economia sem salvaguardas de proteção social, o desprezo pela ciência e pelos povos tradicionais e o apelo constante a valores nacionalistas e fascistas. Esperar um comportamento republicano de quem sempre foi avesso à democracia é, no mínimo, uma ingenuidade.

Quando os primeiros sinais de um surto pandêmico se apresentavam nos países asiáticos, o governo brasileiro comemorava o desmantelamento do sistema previdenciário e discutia a imposição de um ajuste fiscal ainda mais rigoroso, com cortes em vários setores de políticas públicas, dos direitos de| servidores, além de uma nova investida contra as regras de proteção do trabalho. Antes da pandemia o Brasil amargava um índice de 13 milhões de desempregados, o retorno ao mapa mundial da fome e assistia o corte indiscriminado de recursos no Programa Bolsafamília no Nordeste.

Além disto, o ano de 2019 foi marcado pelo crescimento acelerado do desmatamento e dos crimes ambientais, inclusive com a poluição de todo o litoral nordestino por lançamento de petróleo, pelo corte de bolsas de pesquisa e pela restrição do acesso às universidades públicas. Somam-se a estes fatores as heranças do Governo Temer que extinguiu todos os programas de urbanização e impôs a Emenda Constitucional nº 95/2016, norma que retirou bilhões de reais das áreas de saúde e assistência social para atender aos interesses do mercado financeiro.

Como se observa, desde a chegada de Temer ao poder o Brasil vem semeando o caminho de um desastre, algo que apenas se agravou com a bagunça institucional criada por Bolsonaro. Não há nenhum sinal de preocupação real com o enfrentamento da crise no discurso presidencial. Inclusive há um recurso farsesco à questão dos empregos para justificar as tentativa de forçar uma retomada das atividades econômicas comerciais, algo incompatível com as suas ações. O desemprego no Brasil é um resultado direto das ações do governo, algo que somente foi piorado com a pandemia.

O relato do avanço da pandemia de COVID-19 na Europa criou uma falta interpretação de que esta era uma doença que afetava especialmente a população idosa. Isto foi muito da narrativa dramática de sistemas de saúde colapsados que passaram a escolher quem deveria ser tratado nas unidades intensivas, com base no maior tempo potencial de vida.

No entanto, a própria Organização Mundial de Saúde já indicava a possibilidade de rejuvenescimento da doença em países como Brasil e Estados Unidos e um dos fatores impulsionadores desta preocupação era exatamente a desigualdade no acesso aos sistemas de saúde.

De fato, em ambos os países a doença se universalizou em todas as faixas etárias com mais intensidade do que na Europa e na Ásia. Tanto que a maioria das vítimas fatais de COVID-19 no Brasil esta na faixa etária de 20 à 39 anos. Quais os motivos para isto? Algumas questões podem ser apresentadas:

1º) embora a doenças tenha se iniciado nas classes mais abastadas economicamente, a maioria das vítimas fatais de COVID-19 no Brasil e nos Estados Unidos são pessoas de baixa renda, com acesso restrito a um sistema de saúde colapsado ( Brasil) ou nenhum acesso (EUA).

2º) são países onde existem grandes metrópoles cercadas de regiões com subabitação. No Brasil as favelas, nos EUA, os acampamentos de veículos. Mesmo em regime de distanciamento social, faltam locais adequados e estratégias de isolamento consistentes por parte dos governos. Se nos bairros de classe alta e média ainda é possível propor que pessoas infectadas pelo vírus sejam mantidas com máscara em quartos isolados, na periferia, em casas de 1 ou 2 cômodos, isto é impossível. Talvez fosse possível pensar na utilização temporária de equipamentos urbanos como escolas e ginásios de esportes como enfermarias improvisadas (modelo chinês), mas para tanto seria necessário aumentar o número de profissionais de saúde. Não é por acaso, por exemplo, que Manaus, cidade cercada por palafitas, seja a cidade brasileira com a situação mais dramática em termos de mortalidade.

3º) no Brasil, praticamente não existem unidades de internação nas periferias. Mesmo as UPAS estão localizadas em regiões mais centrais. Os hospitais de campanha, em sua maioria, foram instalados em regiões mais centralizadas como no exemplo do Estádio Pacaembu ou no Rio-Centro. Isto demanda dificuldades de acesso, pois com o distanciamento social ocorreu a restrição dos sistemas de transporte. Uma descentralização maior dos equipamentos de saúde nas grandes cidades ajudaria a reduzir o impacto da doença nas periferias.

4º) ao contrário dos países europeus, nem Brasil, nem EUA, apresentaram medidas eficientes de apoio aos trabalhadores que ficaram afastados dos seus postos. E mesmo projetos aprovados emergencialmente, como a renda mínima, sofrem com embaraços burocráticos e insegurança nos pagamentos, fator agravado no Brasil pela postura do governo que prioriza o ajuste fiscal.

5º) as constantes tentativas dos governos brasileiro e norte-americano, bem como de governos subnacionais, de forçar um retorno regular das atividades econômicas sem nenhuma garantia de segurança. Na prática, tais posturas acabam forçando uma ruptura das ações de distanciamento social, dando a falsa impressão de normalidade e prejudicando o combate à pandemia.

6º) a ausência de iniciativa por parte dos Governos brasileiros para unificar os sistemas de internação hospitalar. Como os recursos são escassos, a falta de um sistema unificado de atendimento reforça a diferenciação de classe e aumenta a taxa de mortalidade exatamente no segmento mais vulnerável estruturalmente, além de aumentar a burocracia/demora para internações de urgência.

7º) a ausência testes. Isto prejudica o trabalho de vigilância e resulta em voo cego, prejudica o pensamento estratégico dos órgãos de saúde e cria uma falsa sensação de normalidade, facilitando a disseminação do vírus. O distanciamento social é uma medida para reduzir o impacto da pandemia nos sistemas de saúde. Quando há uma redução nas ações de controle, a movimentação de pessoas aumenta e o impacto nos sistemas de atendimento em saúde também, até porque outras doenças continuam coexistindo. A falta de testes permite a disseminação do vírus por assintomáticos, elevado o risco. Os EUA acelerou o processo de testagem depois que o vírus resultou em elevado número de mortes, mas o Brasil continua com números absurdos de subnotificação.

Como se observa, existe uma série de fatores que resulta no aumento da mortalidade da COVID-19 no Brasil, alguns estruturais, mas muitos resultantes de problemas criados pelo próprios governos, especialmente pelo Federal. Este, por sinal, não falha apenas por ter abdicado do seu papel de coordenação e planejamento, mas por agir contra as medidas de proteção, admitindo mortes como uma consequência natural.

Trata-se de um pensamento que ultrapassa a barreira da irresponsabilidade e ingressa no âmbito da intencionalidade. Não há uma real preocupação com o desemprego, até porque este foi criado pela política econômica. Não há uma preocupação com a vida, pois os mortos se acumulam sem causar empatia no centro do poder. Há, na verdade, um projeto de poder ideológico autoritário, que já estava presente no processo eleitoral, no qual as mortes fazem parte do cálculo político apenas como uma variável. Logo, estamos diante de um genocídio.

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