.Por Octávio Fonseca Del Passo.

No dia 31 de março fiz uma intervenção neste mesmo veículo (LINK), afirmando que o governo de Jair Bolsonaro indicava estar perdendo apoio e que ele pode estar se enfraquecendo. Para sustentar minha afirmação, busquei evidenciar que há fissuras significativas entre o que chamei de “direita tradicional”, representada na cena política, sobretudo, por João Dória e Rodrigo Maria, e a direita neofascista, chefiada pelo próprio Bolsonaro. Também aproveitei para tentar estabelecer um vínculo entre essas fissuras que envolvem as direitas, que se expressam na cena política, e as classes e frações de classes sociais.

(foto roberto parizotti – fp)

No entanto, o texto pode ter gerado novos tipos de questionamentos, de modo que podem restar questões pertinentes que merecem a nossa atenção. Para alguns, o conjunto de afirmações por mim publicadas pode ser, na verdade, apenas a constatação de uma disputa que existe entre candidatos pelos votos dos eleitores. Outros podem afirmar que, no fundo, se trata de uma disputa entre personalidades que pretendem definir quem representará prioritariamente os interesses unificados das classes dominantes na cena política.

A consequência que tiramos desse tipo de raciocínio é que tanto faz quem representará, uma vez que os interesses representados serão os mesmos. Por fim, temos aqueles que reconhecem que há uma divisão e uma disputa entre neofascistas e “direita tradicional”, mas que independente disso há consenso entre eles quanto ao programa econômico neoliberal. A consequência desse pensamento é semelhante ao anterior, tanto direita neofascista quanto a “direita tradicional” seriam péssimas para as classes populares, pois ambas representariam o mesmo programa econômico neoliberal.

O fato de termos que admitir que ainda não saibamos qual será o impacto que a crise do Coronavírus terá na economia e na política nacional, faz-nos sentir desobrigados a considerar esse impacto nesta análise. Desse modo, abstraindo momentaneamente que há setores pedindo novamente a atuação do Estado de maneira mais contundente na política econômica, reconheço que até no inicio da pandemia no Brasil havia um consenso por parte das classes dominantes sobre a aplicação de um programa neoliberal no país.

Ainda que pudéssemos fazer uma ressalva, lembrando que a unidade em torno dos governos de Temer e de Bolsonaro não é completa, o que unifica o bloco no poder em torno deles é a política social regressiva e as privatizações que esses governos representam A abertura econômica, embora tenha assumido posição secundária, permanece como divergência.

Vale a pena recordar que quando falamos em consenso entre as frações de classes, no Brasil, devemos ter em mente os diversos momentos da história em que houve uma guinada na política de alianças das classes e frações de classes, devido à movimentação da grande burguesia interna. Ou seja, a sua movimentação ziguezagueante ainda pode nos surpreender diante da crise que se agrava, especialmente se houver continuidade do extremismo neoliberal de Paulo Guedes em cenário recessivo.

Mas então, se concordo que exista essa unidade econômica momentânea, porque insistiria nas divergências políticas entre as frações de classe social que se expressam no parlamento, em detrimento da convergência que elas possuem em relação ao plano econômico? O que explica o acirramento da disputa política na direita, se supostamente estão unificadas na política econômica? Uma vez que a conjuntura atual sugira, hora ou outra, polêmicas e suspeitas de impeachments e golpes, vou tomar um exemplo extremado para evidenciar porque os analistas e atores políticos devem se atentar para essa disputa que chamo a atenção.

Uma das maiores diferenças entre a “direita tradicional” e o neofascismo é que a primeira não utiliza, ao longo da história, a prática de organização do povo, não tem estratégia de mobilização popular. No entanto, não são raras às vezes em que em situações de crise ela faz valer-se da mobilização esporádica das classes médias e da pequena burguesia, como a tentativa de golpe em 1954, no período precedente ao golpe militar de 1964 e, mais recentemente, no golpe parlamentar contra Dilma Rousseff. Mas vale notar que a “direita tradicional” historicamente mostrou medo de líderes fortes, sejam eles de esquerda ou direita. Também já demostrou ter medo de povo mobilizado na rua e, por isso, seus golpes são, majoritariamente preventivos. Eles evitam esse tipo de conflito.

Já o neofascismo pressupõe a mobilização e a organização das massas porque ele pretende eliminar o inimigo, inclusive do Estado. O fascismo cultua a violência e prepara a sua base para o enfrentamento, para se organizar no sentido de combater o inimigo. Inclusive fisicamente. É por isso que o termo neofascismo cabe bem ao movimento bolsonarista. Ele apela à mobilização das massas, mas sem organização, o que o diferencia do fascismo clássico e justifica o prefixo ‘neo’.

No entanto, essa não é uma questão estática, Bolsonaro tem base ativa nos territórios controlados pelos milicianos, base ativa nas redes sociais, base ativa mobilizada nas ruas e tenta construir um partido político com princípios fascistas, embora o Aliança pelo Brasil ainda não tenha avançado. Além disso, não faz questão de esconder que seus inimigos são os que eles consideram traidores e as organizações de esquerda. Mas não apenas a esquerda partidária e social, inclui também os movimentos de minorias, como LGBT, feminista e negro, considerados como uma afronta aos valores tradicionais.

Dito isto, gostaria de registrar um ponto que, embora mais óbvio, não é irrelevante. As consequências imediatas que podemos tirar do exposto acima é que caso o neofascismo se mantenha e se fortaleça no Estado, ele seguirá atentando contra as instituições permanentemente no sentido de miná-las e seguirá na tentativa de erigir uma ditadura fascista através da destruição da democracia liberal. Por outro lado, caso a “direita tradicional” assuma o comando do Estado brasileiro, seja por impeachment ou por eleições, a maior probabilidade é que tenhamos a tentativa por partes das forças sociais dominantes e partidárias presentes no Congresso, de um retorno para um padrão de funcionamento das instituições próximo ao que tínhamos antes do golpe parlamentar contra Dilma.

Deste modo, algo importante a ser destacado é que o neofascismo não se contenta com a democracia burguesa restrita da chamada “Nova República”, ele pretende eliminar todo e qualquer “espaço democrático da esquerda” (como já foi dito explicitamente pelo próprio Bolsonaro), o que significa, na prática, eliminar os canais de acesso ao Estado e os centros de decisão e as liberdades políticas existentes, mesmo que limitadas.

Como afirmei no texto anterior, parece que em momentos como esse é mais arriscado evitar realizar previsões sobre o desenrolar dos fatos do que errar a previsão. Por isso, peço licença ao leitor para realizar um exercício prospectivo. Imaginemos que volte a ocorrer nos próximos anos um caso de ruptura institucional no Brasil.

As características que apontamos acima nos levam a deduzir que caso essa ruptura fosse dirigida pela “direita tradicional” nós teríamos que enfrentar novamente uma espécie de “golpe institucional”, ou seja, a tática provavelmente adotada seria uma saída jurídico-parlamentar, um golpe branco, o que resultaria em maior e mais rápida desidratação da democracia liberal, contudo sem eliminar as liberdades políticas formais (eleições, imprensa livre, direito de reunião e organização, etc.).

Nesse sentido, a via Mourão parece se fortalecer, embora ela seja dúbia. Por outro lado, se o momento de ruptura fosse dirigido pelo neofascismo tenderíamos a crer que ela se daria por meio de um golpe militarizado, mas com base social ativa e mobilizada e que esse golpe ocorreria por fora das instituições, como o Congresso e o STF, e contra elas, consumando o desfecho autoritário e o estabelecimento de uma ditadura de tipo fascista.

Fazer essa diferenciação não significa dizer que estou apostando que a “direita tradicional”, apenas por ser liberal na economia seria também liberal na política e jamais apelaria à militarização da política. Não acredito que esse setor tenha a democracia como um valor a ser zelado, isto é, como um “valor universal”. Ao contrário, tenho certeza de que ela recorreria à força militar e a uma ditadura caso tivesse a necessidade de, além de dar um golpe para realizar a troca de um governo, encerrar um ciclo de ascensão e mobilização das massas populares, como ocorreu em 1964.

Em minha leitura, a diferença reside no fato de que os neofascistas utilizam a violência contra seu inimigo por principio e a “direita tradicional” a utiliza no limite de ruptura das conjunturas e isso implica no tipo de regime político que tende a se estabelecer e na tática que o campo da esquerda deve elencar para enfrentar cada um desses campos da direita. A forma que o Estado repressivo toma (ditadura militar ou fascista), mesmo que sob um mesmo programa econômico, implica pautas políticas, estratégia e táticas de mobilização distintas e que não são pequenas e, por isso, tanto os analistas quanto os dedicados à luta política devem se atentar a ela.

Quer dizer, o tipo de regime importa para a capacidade de luta e resistência do movimento popular, que seriam muito piores em uma ditadura e ainda pior em uma ditadura de tipo fascista. Ao mesmo tempo, reconhecer essa distinção não implica em aderir às posições da “direita tradicional”, o movimento popular deve assumir uma política independente na crise e buscar explorar ao máximo essa contradição para isolar enfraquecer o neofascismo e reduzir as possibilidades de um golpe.

Octávio Fonseca Del Passo é doutorando em Ciência Política pela Unicamp e editor da revista Cadernos Cemarx.