Duas lágrimas na ponte Dandong
.Por Francisco Foot Hardman.
De Pequim
80 dias de paciência e espera. Há muito sol, há muitas flores, há flocos leves esvoaçantes, há pássaros inquietos para anunciar que toda transumância será possível, e nenhum cordeiro será sacrificado em vão. Há muitos frutos benditos, há muitas promessas nas crianças que saem em desabalado passo na busca de arredores plenamente habitáveis. De clareiras claras e seguras.
Há vontade de vida renovada em Pequim. Há desejo de que a humanidade seja de fato humana e una e húmus na sua busca de paz cosmopolita perpétua, que o filósofo sonhou e a maldade dos maus no mundo fez soçobrar ontem e hoje, e ainda agora, neste nosso Brasil injusto, desigual, dilapidado, coração em chagas dos predadores que o rapinam. Dos boçais que o amputam. Dos desgraçados que o dividem. Dos capitães do ódio e seus comandantes convertidos em soldadinhos de chumbo. Da feiura de todos esses monstros patéticos que um dia serão pó sobre pó na estrada aberta dos pastores da boa verdade.
Mas, aqui, há vontade de uma memória que consagre o instante sublime de uma República que se fez popular na luta, muito antes que o surto de morte fosse pandêmico. Até o combate do vírus aqui assumiu tom épico. Por isso, agora liberado para passear por ruas ruidosas em crescente cidade feliz, fico só em casa, e sonho com as viagens feitas até janeiro, que ficaram longe no tempo, distantes no espaço, mas alcançáveis na alça de fotos fátuas, nas águas sábias e salobras do rio Yalu, na compaixão que a história apenas nos pede. Nas duas pontes que Dandong nos propõe: a ponte quebrada, museu aberto da guerra da Coreia; e a ponte refeita, inteira, da amizade sino-coreana, a invocar caminho aberto à paz, se hoje precária e pendente, a se lançar como projeção de passagem possível por todos comungada.
Era final de setembro. No dia 1 de outubro, a festa nacional dos 70 anos da República Popular da China mobilizava o país inteiro. Viajei cerca de 700 Km entre Pequim e Dandong, na província nordeste de Liaoning, cidade limítrofe da Coreia do Norte. Lá, conhecia o pesquisador Li Guangle, doutor e pós-doutor em Direito Internacional pela Universidade de Bolonha, desde a residência universitária de Borgo Panigale, em que Giorgio, seu nome de adoção na Itália, discutia comigo, há quase 7 anos, sobre os impasses da política mundial na atualidade, ao mesmo tempo em que revíamos, na Cinemateca da via Azzo Gardino, as imagens únicas e hoje completamente mudadas da Pequim filmada por Antonioni em seu magistral Chung Kuo (1972).
Esta cidade fronteiriça tem o imenso rio Yalu a atravessá-la, rio de 1.400 km que nasce no mítico monte Baekdu e se abre em delta no mar Amarelo, separando, em toda a sua extensão, a China da Coreia do Norte. Eram dias e noites belas naquele início de outono. Ao largo da beira-rio, era possível passear infatigavelmente, vendo a agitada sequência de lojas e ambulantes a que todo ponto limítrofe faz convergirem. E caminhar pela ponte quebrada, resultado dos bombardeios norte-americanos na altura de 1950, que castigaram de modo atroz essa cidade, na expectativa de refrear a entrada dos chineses na guerra, recém-saídos de outra prolongada, que tinha expulsado os japoneses invasores e visto nascer a República Popular.
As ruínas da ponte de Dandong, em seus 940 metros interrompidos, fazem lembrar os milhares de mortos que o rio Yalu guardou. Ao lado, cerca talvez de 250 metros, ergue-se a ponte nova e refeita, com seus 3 km de extensão, por onde trafegam trens, caminhões e carros. À noite, luzes projetavam cores magníficas, a celebrar também a Festa Nacional. Na outra margem, sempre visível, mas distante, enigmática em suas construções silentes, a cidade norte-coreana de Sinuiju.
Graças ao apoio do amigo Li Guangle, pude percorrer de barco esse trecho urbano do rio Yalu. Mas nada foi mais tocante do que as caminhadas noturnas ao longo da beira-rio. Numa noite, entre espigas de milho assadas na hora, no passo da multidão de vendedores e andarilhos, vendo o jogo de cores luminosas jorrar em arco da ponte nova, deparei com duas pessoas que até hoje ouço numa música estranha e demasiado humana.
Um jovem adolescente, portador de síndrome de Down, que chamarei aqui de Hên Hâo (= Muito Bom), cantando uma toada antiga e triste, mas viva em súplica, puxava, numa corda, um carrinho de madeira que transportava sua mãe, senhora na altura dos 50 anos, paralítica, que carregava um rádio também antigo e um discreto pote para receber auxílios. Revejo agora a cena: eles vêm e vão, cruzando ao largo da ponte que é só cores, ao ritmo do lamento musical de Hên Hâo, numa trilha que parece de início ser recebida com indiferença pelas tantas gentes; depois, não, é como se seu compasso fosse de todo familiar aos ambulantes, e três senhoras se aproximam do carrinho e doam auxílios que são recebidos pela mãe e respondidos por Hên Hâo com a elevação de sua toada em quase grito, súplica que supera sacrifício, alegria que quer num rápido instante se fazer entender.
Hesitante e comovido, eu, o único viajante ocidental em toda aquela beira-rio de tanta história, me aproximo tímido e dou uma esmola, mesmo sabendo que esse gesto não é tão comum nem tão valorizado nas relações sociais desta República. Que, naquela noite, celebrava um feito maior na história do século 20: a fundação de um regime popular revolucionário e a construção de uma nação que hoje se apresenta, sem dúvida, como a principal potência – não colonialista, não racista, não imperialista – deste século 21 tão transtornado.
A mãe me olhou com ternura e me agradeceu com um Xièxie, para além de qualquer formalidade, que se combinava com o canto esquisito de Hên Hâo, que evocava os milhares de mortos da guerra da Coreia no rio Yalu, e punha ainda uma musiquinha em sua radiola, que para mim era como um adeus, um até sempre, um somos-todos-iguais. E chorei porque era justo chorar.
E se há motivo de canto e motivo de choro, que seja aquele da compaixão maior de todos os Cristos sacrificados pelo direito dos miseráveis, de todos os Maomés proféticos de paz e de bondade, de todos os Budas que se imolaram contra a guerra do Vietnã, que minha geração viu e nunca mais pode esquecer. Porque assim é: ou a Páscoa é a dos que nada têm, ou ela também não é nada. Disso, Hên Hâo sabe bem desde que cresceu no seu canto de lamento e luz. Disso, sua pobre mãe sabe bem, desde que teve como dádiva um carrinho, um rádio rouco e um filho boníssimo sob a ponte de Dandong. (texto publicado originalmente no Jornal da Unicamp)