Você não estava aqui

.Por Ricardo Pereira.

Se o filme anterior de Ken Loach, “Eu, Daniel Blake”, era sobre o universo da assistência social, com o aumento da burocracia e dos obstáculos criados por novas regras que tornam mais difíceis o acesso à pensões e aposentadorias, “Você Não Estava Aqui” fala sobre o mundo do trabalho, sobre os efeitos da flexibilização das leis trabalhistas que deixa totalmente a descoberto o trabalhador. E ainda que passados na Inglaterra, ambos os filmes tratam de uma realidade com a qual nós brasileiros teremos que lidar cada vez mais após as reformas neoliberais da previdência e a trabalhista.

(imagem – divulgação – sorry, we missed you)

O título do filme (“Sorry We Missed You”, no original) faz referência ao cartão deixado pelos serviços de entrega quando o morador não é encontrado em casa, mas também se refere mais diretamente ao fato de que os dois personagens principais, Ricky (Kris Hitchen) e Abby (Debbie Honeywood), mal se veem ou à seus filhos, enquanto andam de um lado para o outro de Newcastle tentando sobreviver num mercado de trabalho que não remunera na mesma proporção que os sobrecarrega.

Mestre em retratar a classe trabalhadora britânica, Loach apresenta uma família inicialmente unida que se esfacela diante da necessidade dos genitores de ampliarem sua carga horária de trabalho para custear um padrão de vida minimamente digno. Assim “Você Não Estava Aqui”, definitivamente, não está falando de algo distante de nós. Ricky, o pai, acaba de assumir o cargo de motorista de um serviço de entregas. Ele até investiu na compra de sua própria van, criando um risco de crise financeira iminente se ele não cumprir os prazos estipulados pelo seu “empregador”.

Coloquei empregador entre aspas porque a empresa para a qual Ricky faz entregas só existe para puni-lo caso não faça o seu trabalho direito, não há no “contrato” qualquer tipo de segurança para Ricky, se ele é obrigado a se ausentar do serviço porque o filho adolescente se meteu em confusão ou porque foi vítima de um assalto violento quem arca com as consequências é o próprio trabalhador e estas vêm na forma de multas que só comprometem o orçamento já apertado da família. Qualquer semelhança com a “uberização” que já reina no mercado de trabalho brasileiro não é fortuita, Loach está falando dela mesma – com outro nome, com outra faceta, mas que despeja nas costas do trabalhador todos os ônus. O chefe de Ricky, Maloney (Ross Brewster), embora apareça como o vilão da história, nada mais faz do que reproduzir o discurso dos economistas neoliberais recheado de eufemismos sem sentido e ilusões individualistas – pense em Paulo Guedes falando sobre a necessidade das reformas.

O filme faz todo o esforço para nos lembrar que essas pessoas que entregam nossas encomendas são seres humanos, é que o processo de desumanização inerente ao capitalismo não simplesmente transforma esses trabalhadores em “coisas”, mas faz com que esqueçamos disso também ao nos concentrarmos mais nos minutos de atraso da entrega do que no risco e na dificuldade de se locomover no trânsito cada vez mais caótico das grandes cidades.

A esposa de Ricky, Abbie, trabalha como cuidadora de idosos e pessoas com deficiência, passando o dia indo de uma casa à outra e o que é pior de ônibus, uma vez que a família teve que vender o seu carro para conseguir dar entrada numa van, com isso seu contato com os filhos se dá por meio do celular. Essa distância dos pais que quase sempre encontram os filhos já na cama quando chegam do trabalho tarde da noite também cobra um preço.

Os dois filhos estão lidando com seus próprios problemas, pois o filho adolescente, Seb (Rhys Stone), é suspenso após uma briga na escola e quase é fichado após furtar tintas spray de uma loja. A revolta do filho não é com o pai, embora se dirija a ele, é que devido à sua idade falta-lhe condições para entender que sua revolta é contra o projeto neoliberal que obriga o pai à quase escravidão. Por outro lado como Ricky pode convencer o filho de que se ele estudar e for uma pessoa decente terá uma vida digna no futuro quando ele mesmo é a prova viva do fracasso dessa tese. A filha mais nova, Liza Jane (Katie Proctor), está sofrendo seu próprio colapso, testemunha de uma família que está presenciando desmoronar diante dela motivada por forças internas e externas que ela também não entende. O que faz de “Você Não Estava Aqui” um estudo de como as pressões econômicas do capitalismo roem os laços de segurança e naturalmente afetuosos de uma família.

O roteiro de Paul Laverty (também é dele “Eu, Daniel Blake”) nos oferece diversos momentos em que a família tem a oportunidade de estar junta e desfrutar da companhia um do outro, mas a pressão de um trabalho sem horário definido os obriga a mudar os planos. Sempre me surpreendeu que a esquerda permita à direita reivindicar tão facilmente para ela o título de defensora da família quando, na verdade, estão por detrás de políticas que mais ameaçam do que protegem.

O que destrói uma família não é uma maior liberalidade nos costumes – alvo preferido dos conservadores – mas baixos salários, uma carga pesada de trabalho, a situação de semi-escravidão que a direita aponta como solução para o desemprego. No filme de Loach isto fica mais evidente quando Ricky todo machucado após um assalto violento vê-se obrigado a ir para o trabalho a despeito de todos os protestos da esposa e dos filhos.