Go China!
.Por Francisco Foot Hardman.
De Pequim
Enquanto o Ocidente entra em polvorosa, a OMS decreta finalmente pandemia e os mercados financeiros globais derretem como carrinhos de picolé no Saara, a China parece, pouco a pouco, acordar de sua hibernação do Ano Novo Lunar, pronta para outro ciclo e outros combates. Hibernação só aparente, digamos: pois sabemos que a única espécie de urso que não hiberna são os pandas.
Algum movimento urbano já se pode vislumbrar nas ruas de Pequim, diminuto, embora, perto da azáfama diária dessa velhíssima e novíssima capital do “País do Centro”, na livre tradução para o nome original da China, Zhôngguó.
Volto à livraria All Sages. Além da máscara e checagem térmica, ritual corriqueiro há várias semanas, a moça me faz pôr um par de luvas cirúrgicas, apertadíssimas. Você já experimentou usar o touch para pagar uma conta no celular com esse tipo de luvas? Não tente, por favor. Nos vários corredores de livros, só mais um cliente. Ou melhor, dois, se considerarmos o velho gato preto, que desfila entre miados, mas imperturbável por todo o estabelecimento, quem sabe descontente, como eu, com o fato de o café permanecer fechado, e ele estar privado de sua cadeira forrada preferida. Gatos pretos são particularmente populares aqui devido a um personagem de desenho animado em série, de muito sucesso entre crianças de algumas décadas atrás: Hêi Mâo Jîng Zhâng, isto é, o Chefe de Polícia Gato Preto.
E, na mesma rua Chengfu, milagre, o simpático restaurante familiar de Guangdong, comida cantonesa, reabriu discretamente. Como nas poucas vezes que vim, após o confinamento, estava só no salão, toda a família me conhece, e me servem com muita alegria. O peixe do tanque da entrada, cioso de que a epidemia lhe deu maiores chances de sobrevida, parece também alegre. E, numa parede, a legenda erguida em letras douradas, “2020 – Happy New Year”, destila agora, levemente, sabor de amarga ironia. Nada que impeça, porém, a um dos empregados improvisar seu jogo de paciência, tentando derrubar garrafas vazias com um palito chinês (kuàizi) fazendo as vezes de espada imaginária. E nem que a família e o staff reduzido se sentem à mesa redonda, forma mais tradicional apreciada como espaço compartilhado nas refeições, e façam seu repasto sem nenhum incômodo da minha presença, reatualizando, no restaurante vazio, o desejo real de ano novo feliz.
Quando a epidemia esteve restrita à China, vozes agourentas ou ressentidas, ou mesmo racistas, riram aí no Ocidente do próximo tombo do Dragão asiático. Quem ri por último ri melhor? Mas os chineses não costumam rir da desgraça alheia, até porque, amiúde, sabem que o destino da humanidade é um só. Só mesmo a insanidade de desgovernos como o que nos castiga neste instante, poderia ignorar ou levar na flauta a gravidade do quadro que ceifou mais de 3 mil vidas somente aqui na China. Se o conceito de globalização serve para alguma coisa além da euforia-depressão das cifras do mercado acionário, deveria ajudar numa consciência ecológica planetária, que é socioambiental por princípio e comunitária (no sentido mais primordial do termo) por vocação.
O que se percebe, aqui, é que este é um povo que aprendeu, ao longo de milênios de uma civilização constituída de tantos revezes, a ter paciência, a esperar para além da afoiteza dos relógios acelerados do capitalismo. Mesmo que, contraditoriamente, tenha- se aberto para as relações de produção e reprodução ampliada do valor de troca, prevalece a ideia de comunhão popular e de solidariedade internacional. Há interesses hegemônicos em jogo? Sem dúvida. Mas a China aparece como o grande fiador, no mapa-múndi de hoje, da paz mundial. Como o ator capaz de contribuir para a maior estabilidade nas relações geopolíticas entre hemisférios, continentes e países.
A paciência chinesa é como seu “ovo centenário” (pidàn). Quando o comprei, meio inadvertidamente, na vendinha da vila, minha colega Fan Xing explicou-me tudo a respeito desse ovo conservado durante longo período em invólucro especial, sob uma mistura de argila, cinzas, cal, sal e amido de arroz. E não é que é uma delícia? Os vídeos que se verão na internet, chamando-o de ovo “podre” ou “estragado”, são parte da idiotia digital que hoje é regra: seria mais ou menos como chamar vinho de “suco de uva podre”, ou cerveja de “suco de levedura azeda”. A colega me confessou que, em seus 5 anos de Unicamp, muitas vezes sentiu saudades do pidàn. Quando eu me for daqui, talvez não chegue a tanto, mas apreciei bastante seu sabor apurado, sua clara escura com tons esverdeados e desenhos internos ao modo de fractais. Tradição milenar, é provável que essa técnica de preparo e conservação do ovo corresponda a períodos de relativa escassez alimentar no mundo rural, que não é outra também, entre nós, a história dos pães, queijos, charques, para não falar dos álcoois de frutos fermentados.
Mas, se a ordem é esperar, retorno sempre à cantina universitária do bairro, enturmado com toda a equipe, agora frequentada por um tiquinho a mais de gente, nem de longe comparável ao turbilhão humano que fazia filas no outono passado. Que ficou realmente na memória como um passado já distante. E lá, de novo, não há como passar ao largo do cartaz chamativo com sua palavra-de-ordem: Go China! – assim mesmo em inglês, ao lado dos caracteres que poderiam ser melhor traduzidos em português como: Força, China! O desenho é de um coração vermelho, mas, de perto, vemos que é a imagem de uma máscara. E os dizeres que encabeçam essa mensagem, de claro teor mobilizatório, conclamam: “Consolidar a confiança. Fazer a travessia do rio no mesmo barco (antigo provérbio chinês). Prevenir e curar cientificamente. Aplicar as políticas com precisão”. Próximo da entrada-saída, o cartaz não é capaz de desconcentrar o guarda e nossa heroína da cantina em seu horário de almoço. Além do visitante-fotógrafo de ocasião, quem mais se interessou pela imagem forte foi um menino, que pediu ao pai apressado para lhe explicar a mensagem. Na parede, abaixo, seguem as figuras de folhagens e de uma libélula pintadas bem antes.
Libélula, esse inseto tão lendário, no Oriente e Ocidente, sugere-nos metamorfose, proximidade do verão, harmonia e boa fortuna. Também instabilidade nas suas asas trepidantes. Mas, prevalência, afinal, do equilíbrio mágico de suas asas. Go China! Nem é preciso avisar. (publicado originalmente no Jornal da Unicamp)