O professor titular do Departamento de Teoria Literária do IEL (Instituto de Estudos da Linguagem) da Unicamp, Francisco Foot Hardman, está morando na China. Ele é professor-visitante na Escola de Línguas Estrangeiras da Universidade de Pequim a convite dessa instituição, dentro do acordo de cooperação que ela mantém com a Unicamp. Veja abaixo a crônica:

O café mais secreto do mundo

.Por Francisco Foot Hardman.

Amanhece com chuva fina em Pequim. Vai esfriar mais um pouco, mas o tempo já vem esquentando nesses dias. A chuva é boa, porque não sendo do tipo catastrófico que tem castigado Belo Horizonte e São Paulo, limpa bem o ar. A qualidade do ar aqui estava pior nesses dias. Nada que se compare à poluição de poucos anos atrás, mas assim mesmo ruim, e pior se você deve permanecer em casa,  para diminuir risco de contágio. Quase ninguém nas ruas de Haidian. Essa paisagem – para quem conhece a megalópole e este bairro, ou pode imaginar uma cidade com população em dobro da cidade de São Paulo (se bem que numa área muito maior, bem mais espalhada) – é a de uma cidade-fantasma, surreal em seu silencioso e inusitado cotidiano.

(foto arquivo pessoal)

E o que fazer aqui? Preparo aulas em áudio e envio materiais pelo aplicativo We Chat e em mailing aos meus alunos. Converso com o representante da classe, função aqui importante e nada decorativa. Eles esperam ansiosos para voltar a Pequim e a este belíssimo campus, onde têm moradia assegurada durante toda sua graduação ou pós. As aulas presenciais estão adiadas por tempo indeterminado. Uma aluna na distante cidade de Wuchuan, extremo-sul, província de Guangdong, pergunta-me sobre Vidas secas, de Graciliano Ramos, matéria deste semestre, que começou a estudar por conta própria. Ela e outros me perguntam se estou bem aqui, se estou me cuidando. Como são afetuosos, solidários e discretos esses jovens estudantes chineses! Quantas afinidades e aprendizados em comum podem ter com seus colegas brasileiros, experiência que, felizmente, já está em curso!

Outra aluna, lá de Hangzhou, província de Zhejiang, está traduzindo Mia Couto e me consulta sobre dúvidas pontuais. Mais outros três alunos, de outras três cidades diferentes – Zhengzhou, Shenzhen e Fuzhou –, seguem, aplicadíssimos como sempre, no trabalho de suas monografias de graduação, sobre autores tão distintos quanto Rubem Fonseca, Guimarães Rosa e Mia Couto, mas, todos eles, de modos diversos, convergindo no tema central do abandono: o da nação brasileira naquele Agosto trágico de 1954; o desse pai inalcançável e tão desejado em “A terceira margem do rio”; e a ilha desgarrada da cidade e da história em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra.

Em tempo global de abandonos – dos mais pobres, dos doentes, dos esfomeados, dos refugiados das guerras das potências e dos desastres ecológicos de uma civilização capitalista suicida –, chega a me comover a mensagem que recebo de uma única aluna confinada lá em Wuhan, na sua bela cidade natal, depois de eu enviar-lhe vídeo feito por estudantes em Portugal, conclamando à solidariedade internacional com o povo chinês: “Obrigada por este vídeo caloroso, Professor! Durante esse período, minha cidade testemunhou desastres e também amor. O apoio e encorajamento desse tipo são exatamente as forças que nos mantêm em andamento. Não se preocupe comigo, minha família e eu estamos em segurança e saudáveis. Aguardo com expectativa o nosso reencontro na Universidade quando a primavera chegar!”

Se há uma civilização que desenvolveu sabedoria milenar com o motivo da espera – no mais das vezes nas condições mais adversas da guerra, do colonialismo, da fome –, é justamente esta daqui. Por isso, mais do que nunca agora, devemos esperar. E em meio ao aparente abandono da paisagem semi-vazia, podemos indagar as ruas, as árvores, o lago, as tão típicas passarelas que cruzam avenidas quase desertas, as pracinhas, os becos, os hutong revitalizados, mas sempre caóticos em face de nosso classicismo decadente, sobre qual melhor caminho entre todos os traçados. Ou mesmo onde não há traçado visível. E, do nada, em pleno fervilhante e badalado bairro de Sanlitun, agora vazio, o barbeiro de rua, não o de Sevilha, mas este, solitário, aqui, neste domingo de ninguém: corte feminino a 12 reais, masculino a 9, quem se habilita? Só dois clientes na espera, ali mesmo no meio da rua, confesso que vacilei – por conta desse hábil artesão da tesoura não estar de máscara, protocolo que tento seguir à risca.

(foto arquivo pessoal)

E quanto aos Cafés? Em geral, todos fechados. O 1898, cujo nome homenageia a data de fundação da Universidade de Pequim, não reabriu na data anunciada. O café da livraria All Sages, outro point extremamente acolhedor, idem, fechado desde a véspera do ano novo lunar, portanto há três semanas. De lá, como não lembrar do seu gato preto de estimação, animal da sorte, sempre estirado no bom sono, a nos sugerir que existem mais questões relevantes entre céu e terra do que um surto de coronavírus e sua inflação interessada pela mídia global querem fazer crer?

Diante de cenário que reclama prudência e solidariedade, não posso esquecer do “café mais secreto do mundo” (foi assim que o colega do IEL e amigo Mario Luiz Frungillo cravou certeiramente seu nome, quando cá esteve, em outubro passado). Numa ruazinha escondida, em condomínio ao lado da portaria oeste de BEIDA (a sigla em chinês da Universidade de Pequim), entre árvores e folhagens, existe uma porta de madeira e uma placa modesta onde se lê: “Terra dos livros de estoicismo”. E, lá dentro, um café muito convidativo, no passado também funcionou como videoteca, como lugar de cinéfilos em busca de DVDs de filmes de arte raros ou proibidos. Um aviso pede para falar baixo, aviso ocioso, diante da clientela reduzida e, por hábito, silente. Às vésperas do recesso escolar e do confinamento que se seguiu, estivemos lá, eu com as colegas Fan Xing e Ma Lin. Neste lugar incrível, que se mantém há decênios, podemos imaginar mundos bem melhores do que o anunciado pela emergência climática, neste início dos anos 2020, com dados reais e alarmantes.

Na mais simples solidariedade diante da atual epidemia; na mais silenciosa e determinada resistência capaz de reunir vontades dispersas da juventude, que deve herdar o fardo de um planeta em colapso socioambiental; na mais desapegada coragem diante das vilanias, ignorância, racismos de todos os dias, arrogância ridícula dos podres poderes, poderemos, nós, em algum café mais secreto do mundo, extrair do estoicismo algumas de suas melhores lições. Sejamos igual-solidários com os abandonados de todas as sortes. Sejamos cosmopolitas, mesmo ao cruzar esta porta antiga que esconde aromas de um tempo que, parece, nos escapou. (publicado originalmente no Jornal da Unicamp, série Diário em Pequim)