No ano passado, o Banco Central (BC) vendeu US$ 36,9 bilhões das reservas internacionais brasileiras, que servem como garantia ou seguro em momentos de crises cambiais. Ao final do ano de 2002, antes de o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumir a presidência da República, as reservas brasileiras eram de US$ 38 bilhões. Em março de 2016, em pleno processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, elas somavam US$ 372 bilhões.
A “queima” das reservas pelo governo Jair Bolsonaro é explicada comumente pela necessidade de o BC conter a alta do dólar, e porque o Brasil registrou em 2019 a expressiva saída de recursos da ordem de US$ 45 bilhões.
“Na verdade, o governo vende as reservas para abater dívida bruta e para se desfazer de um instrumento de política cambial, porque acha que não precisa dela. Acha que o mercado de câmbio tem que se autorregular e ser determinado exclusivamente pelo mercado”, explica o economista e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Pedro Rossi. “As reservas dão ao governo mais autonomia de política econômica. Mas vender desta forma é ruim, porque não tem objetivo estratégico claro.”
O fato de as reservas internacionais – deixadas por Lula e Dilma – ainda estarem em um patamar alto “é um fator crucial para o país não estar numa situação igual ou pior do que a da Argentina”, diz o economista e ex-presidente da Caixa Econômica Federal Jorge Mattoso.
A continuidade desse movimento é perigosa, na opinião de Rossi. “Se o governo continuar sinalizando na redução das reservas e o mercado entender que o Brasil quer se desfazer dos instrumentos de política econômica e cambial, é preocupante, ainda mais porque o mercado externo é complexo e há mudanças em curso que precisam de atenção do governo.”
A complexidade do cenário internacional, hoje instável, envolve a guerra comercial China-Estados Unidos, a reorganização da Europa, com o Brexit, as várias tensões geopolíticas de desfecho imprevisível, como a dos EUA com o Irã. Esses fatores trazem consigo a possibilidade de crise financeira e, portanto, quanto mais as reservas brasileiras caírem, maior será a vulnerabilidade do país.
O comércio exterior é revelador da atual conjuntura interna brasileira, e também da conjuntura internacional. A balança comercial apresentou em 2019 o pior resultado desde 2015, com superávit de US$ 46,7 bilhões no ano. Em 2015, o superávit foi de US$ 19,5 bilhões.
Para Mattoso, o horizonte está longe de ser promissor, dado que o governo Bolsonaro, com sua agenda ultraliberal, ainda tem três anos de mandato. “Os estrangeiros não estão investindo, estamos exportando menos. Não tem investimento nem na área financeira, nem na área produtiva e muito menos investimento público, e não podemos esperar que este governo vá fazer alguma coisa nesse sentido”, diz. “Portanto, a situação em 2019 deve continuar em 2020. Vamos provavelmente usar ainda mais as reservas e dependemos cada vez mais desses recursos para garantir alguns anos de sobrevivência ao país.”
O movimento brasileiro relativo às reservas, na opinião de Rossi, faz parte de um conjunto de políticas que devem ser analisadas separadamente, mas que estão dentro da “agenda anacrônica de defesa radical de um liberalismo financeiro, comercial, unilateral, sem contrapartida e visão estratégica, o que inclui a política cambial e a venda de reservas”.
Um projeto enviado pelo governo ao Congresso é simbólico dessa agenda, comandada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. O projeto inclui a possibilidade de pessoas físicas e jurídicas abrirem conta no Brasil em dólar. “O Brasil caminha para ser um Equador ou uma Argentina. No conjunto, as políticas voltadas para as reservas refletem a orientação ultraliberal, anacrônica, que o governo está implementando em várias áreas”, diz Rossi. (Eduardo Maretti – RBA)