Não terceirizamos as vozes negras!

.Por Ricardo Alexandre Corrêa.

Ninguém pode me ensinar quem eu sou.”

Chinua Achebe

Os brancos antirracistas que me perdoem, mas eles não podem achar que a solidarização em favor dos negros autoriza a compreensão do racismo em todas as nuances. Existem questões tão profundas que somente a gente consegue explicar, e ainda assim calham situações que ficamos até confusos.

(foto jose antonio alba -pl)

No entanto, este texto não tem a pretensão de desmerecer a importância dos brancos que seguem lutando contra a discriminação e o preconceito racial, a intenção é somente alertar sobre os limites do discurso que eles lançam mão. Mesmo que reconheçam o privilégio branco não tem como se despirem, pois o racismo está enraizado nas estruturas da sociedade, engendrando, segundo a escritora Reni Eddo-Lodge, na “ausência das consequências do racismo. Ausência de discriminação estrutural, ausência de sua raça sendo vista como um problema em primeiro lugar.”

Acompanhar os negros nas redes sociais, ou bater um papo com eles para além desses espaços, pode confirmar as minhas observações iniciais. Os brancos que me seguem ficam até perplexos com algumas narrativas e duvidam que situações racistas aconteçam com tanta frequência.

Contudo, sempre recomendo aos desconfiados o livro “Tornar-se Negro” escrito pela psicanalista Neusa Santos Souza. Essa obra surgiu a partir da pesquisa com pessoas negras, e contém vasto arcabouço de reflexões retratando a profundidade do racismo ao operar no plano psíquico.

Apesar de focalizar as pessoas negras em ascensão social, ouso dizer que é uma aula para pessoas brancas entenderem a tardia necessidade de ampliar nossas vozes. No trabalho há narrativas demonstrando que as demandas dos oprimidos são muito mais complexas do que sugere aqueles que não sentem o racismo na pele.

Para os negros a leitura é fundamental, pois esclarece o desencadeamento que altera a própria a personalidade na exposição do racismo. E, sempre baseado na minha experiência como negro e periférico, procuro estimular os seguidores negros nas redes sociais para refletirem acerca do racismo e como isso tem afetado suas vidas. O interessante é que não demora e inúmeras interações acontecem, evidenciando que o racismo apenas muda de endereço e a pessoa que atinge. Abaixo transcrevo algumas postagens:

“a miscigenação, resultante dos estupros na escravidão, projeto de embranquecimento no pós-abolição e dessa subjetividade fluída que não explicamos exatamente, mas constrói relações interraciais, criou toda confusão do assumir ser negro”. Essa reflexão apontou a dificuldade de muitos indivíduos em assumirem-se negros, principalmente, quando se deparam com debates que tem o colorismo1 como pauta.

“ser negro é ficar constantemente cobrando superação dos próprios limites sem se dar conta que enquanto existir racismo nossos objetivos seguem distanciados.” Aqui subjaz a crítica daquilo que muitos negros escutam desse a infância “você tem que ser duas vezes melhores que um branco para conseguir ser alguém na vida”.

Ao assimilarmos esse pensamento, muitos adoecem mentalmente, pois chega um momento em que tentamos entender o porquê que o esforço dispensado não retira a gente da condição de inferioridade na sociedade.

“ser negro é sentir-se no corpo daquele semelhante faminto, assassinado, violentado, encarcerado, desabrigado e injustiçado.” Nesta postagem marquei a dor, a revolta, o desespero, o medo que atinge os negros quando se deparam com notícias como o assassinato da menina Ágatha, no Rio de Janeiro, ou da tortura sofrida pelo jovem no supermercado Ricoy, em São Paulo. Ambos negros. É devastador esse amálgama de sentimentos decorrentes da potencialidade que o corpo negro carrega dentro do racismo.

Diante dessas colocações sinto-me contemplado com o pensamento do afro-americano Booker T. Washington. Para ele, os negros “tem de enfrentar obstáculos, desestímulos e tentações que são pouco conhecidas daqueles que não estão em seu lugar.”2 Ou seja, jamais os brancos pensariam situações que emergem das percepções dos negros neste mundo que insiste em nos tratar com agudo desprezo.

Nesse sentido, qualquer debate que pretenda pensar uma sociedade inclusiva, objetivando a diminuição dos problemas sociais e raciais, demanda da participação dos negros, caso contrário não terá validade e nem credibilidade.

Não estamos terceirizando as vozes negras, somente os oprimidos racialmente é que farão com que as discussões não sejam vazias e possam produzir pensamentos que conjuguem com a sociedade em termos concretos. Abrir espaço para os negros nos lugares em que o privilégio branco nos exclui é – também – uma prática antirracista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COOLINS, Patrícia Hill (2017). O que é um nome? Mulherismo, Feminismo Negro e além disso. Cadernos Pagu (51): e175118 ISSN 1809-4449.

SOUZA, Neusa Santos (1983). Tornar-se negro: as vicissitudes do negro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal.

1 Segundo Patricia Hill Collins “O termo colorismo refere-se ao preconceito baseado na cor da pele dentro da comunidade negra.”

2 Up from Slavery: Autobiografia de Booker T. Washington. Tradução de José Luiz Pereira da Costa. Disponível em: < http://www.dacostaex.net/livros/UP.pdf>. Acesso em: 30 set. 2019