Os racistas desdenham das dores negras

.Por Ricardo Corrêa.

De pé, raça poderosa, você pode conseguir o que quiser.” Earl Little

Iniciar o dia acompanhando os noticiários e as redes sociais é uma tarefa que exige coragem e doses de equilíbrio emocional. Em meio a tantas notícias sobre a realidade brasileira e do mundo, algumas ficaram tão comuns que confundem e nem parecem que são acontecimentos novos. Somente aos poucos vamos compreendendo que os condicionantes se repetem mudando apenas os sujeitos e os espaços geográficos.

(foto Ausiàs Acarín – cc)

Por ter nascido negro, e estar vivendo na periferia, me interesso principalmente pelas notícias que dizem respeito a essa realidade social. Considero isso importante à medida que as informações e o conhecimento ajudam-me a propor reflexões aos alunos, aos contatos nas redes e demais sujeitos pelos espaços por onde tenho participado onde o objetivo é a transformação social e a superação das dificuldades impostas pelo racismo estrutural.

Nesse percurso o sofrimento mental me acompanha com tamanha intensidade. É muito doloroso encarar as notícias abundantes de situações em que as pessoas negras são vítimas de assassinatos, encarceramentos, discriminações, e maior empobrecimento econômico.

Além disso, há incontáveis relatos que inundam a timeline das redes sociais com histórias que cortam o coração de qualquer pessoa que tem apreço pelos direitos humanos. Diante desses cenários explode uma revolta que se mistura com sofrimento e sentimento de impotência. Ainda mais quando olho para o lado e vejo parcela da população branca gozando de privilégios enquanto os negros seguem carregando os fardos mais pesados para a manutenção dos brancos.

Essa situação é impulsionada pelo modus operandi do racismo estrutural que retira a condição humana dos negros e convence a sociedade de que estes são objetos, passíveis de subjugação e exploração. Agrada-me bastante a reflexão da escritora e artista Grada Kilomba ao apontar como a subjetividade é processada no contexto do racismo

“As pessoas brancas não se veem como brancas, se veem como pessoas. E é exatamente essa equação, ‘sou branca e por isso sou uma pessoa’ e esse ser pessoa é a norma, que mantém a estrutura colonial e o racismo”1

Outro ponto pertinente nos múltiplos cenários do racismo estrutural é a pavimentação de caminhos que provocam as mortes dos negros. Um olhar superficial para as denúncias de genocídio supõe que os racistas estão atirando na população negra, mas precisamos ampliar o espectro de observação porque o racismo estrutural assassina de diversas maneiras.

A desesperança e as condições indignas de sobrevivência adoecem e produzem decisões que levam muitos negros ao consumo excessivo de álcool e entorpecentes, participação em furtos e roubos, estabelecimento em áreas com alto índice de violência, suicídios etc.

Essas vivências desestruturam famílias e resultam em mortes precoces quer seja por violência direta ou indireta. O Atlas da Violência 2019 trouxe números alarmantes sobre a violência no país, e não deixa dúvidas sobre qual a “carne mais barata do mercado”. Neste documento consta que 75,5% das vítimas de homicídios no Brasil, em 2017, foram pessoas negras.

No entanto, o racismo está tão entranhado que mesmo os institutos de pesquisas apresentando números que corroboram com o argumento do genocídio em curso, os privilegiados e racistas utilizam de argumentos desconexos e tendenciosos para nos acusar de “vitimistas”.

Quando isso acontece vem à mente uma ideia expressada pela poetisa e ativista Maya Angelou, e a contextualizo: as pessoas brancas somente entenderiam nossas dores se vivessem pelo menos por um período num corpo negro e fossem vítimas de preconceitos e discriminações, sentissem o que é estar em algum espaço e as pessoas olharem com uma cara de “eu te perdoo” como se tivéssemos culpa por existirmos.2

Nestes tempos sombrios em que a sociedade está tendo maior aderência ao discurso de ódio, complexos desafios no combate ao racismo aparecem. Por isso acredito que os conhecimentos produzidos dentro dos espaços acadêmicos, nas organizações e pelos indivíduos comprometidos com a luta antirracista precisam dialogar com a realidade.

Está na hora de compreendermos que a fome e o genocídio não pedem licença, e que a utopia não pode ser materializada no impossível. Somente quando os nossos pés estiverem firmes no chão, e as vozes unidas num só propósito, não haverá desdenho que se sustente, tampouco o racismo que ele esconde.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMIA APLICADA (IPEA). Atlas da Violência. Brasília: IPEA, 2019. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=arti

cle&id=3478 4&Itemid=432>. Acesso em 05 mai.2019

1 Entrevista da artista e escritora Grada Kilomba

Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/552979-o-racismo-e-uma-problematica-branca-diz-grada-kilomba>. Acesso em: 05 mai.2019

2 Documentário “Maya Angelou, e Ainda Resisto” (2016),