Fábricas de conhecimento

.Por Herton Escobar.

“O senhor dá aula aqui?”, é uma pergunta que o cientista Walter Colli ouve com frequência dos taxistas que o trazem para a Universidade de São Paulo (USP), no bairro do Butantã. Professor titular por três décadas, aposentado desde 2009, ele ainda comparece regularmente à sua sala no Instituto de Química, onde atua como colaborador sênior da instituição. “Não só dou aula”, responde o professor, de 79 anos, com uma pitada de indignação. “Isso aqui é uma universidade de pesquisa, não é uma escola.”

A diferença é óbvia para ele e tantos outros que trabalham com pesquisa e ensino superior no País, mas não para grande parte da sociedade, como mostram os resultados da última pesquisa sobre Percepção Pública da Ciência e Tecnologia no Brasil, realizada em 2015 pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) e pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).

De um total de quase 2 mil pessoas entrevistadas, apenas 13% souberam citar o nome de pelo menos uma instituição de pesquisa nacional. E dentre esses poucos, apenas uma minoria citou o nome de alguma universidade. As instituições mais lembradas foram a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com 19% das citações, seguida da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e do Instituto Butantan. A USP aparece em quarto lugar, com 10%.

O estudo retrata um cenário preocupante, em que as universidades não são percebidas pela população como instituições de pesquisa, apesar de serem elas as responsáveis pela maior parte da produção científica nacional.

Das 50 instituições que mais publicaram trabalhos científicos no Brasil nos últimos cinco anos, 44 são universidades (36 federais, 7 estaduais e 1 particular) e 5 são institutos de pesquisa ligados ao governo federal (Embrapa, Fiocruz, CBPF, Inpa e Inpe), também mantidos com recursos públicos, além de 1 instituto federal de ensino técnico (veja gráfico).

A USP é, disparada, a maior “fábrica de ciência” brasileira, com participação em mais de 20% das pesquisas publicadas no País. Ou seja, de cada 10 trabalhos científicos produzidos no Brasil, 2 tem pelo menos um pesquisador da USP entre os autores.

Na sequência do ranking vêm as outras duas universidades estaduais de São Paulo, Unesp e Unicamp. Juntas, essas três instituições paulistas produziram mais de 80 mil trabalhos científicos nos últimos cinco anos.

Os dados são da base Web of Science, compilados pela Clarivate Analytics, a pedido da reportagem.

“As universidades de pesquisa desempenham um papel crucial na sociedade”, diz o físico e pró-reitor de Pesquisa da USP, Sylvio Canuto. Não só por oferecerem um ensino gratuito de qualidade e formarem bons profissionais, diz ele, mas principalmente por atuarem como “fábricas de conhecimento”, que impulsionam o desenvolvimento científico, tecnológico e intelectual do país.

Os benefícios mais óbvios dessa produção científica costumam ser aqueles gerados na área médica, quando a pesquisa acadêmica se materializa na forma de novas drogas, tratamentos e métodos cirúrgicos. Ou, até mesmo, na forma de um bebê — caso da menina Luisa, que em dezembro de 2017 se tornou a primeira criança do mundo nascida de um útero transplantado de doadora morta, graças a um procedimento pioneiro desenvolvido por uma equipe do Hospital das Clínicas (HC), da Faculdade de Medicina da USP.

O projeto começou em 2014, inspirado em transplantes feitos na Suécia, com úteros de doadoras vivas. O ginecologista Dani Ejzenberg e o cirurgião Wellington Andraus, ambos do HC, foram fazer um curso com o médico responsável pela pesquisa na Universidade de Gotemburgo, Mats Brännström, depois voltaram ao Brasil e começaram a adaptar a técnica para o uso de doadoras mortas, apostando que isso ampliaria a oferta de órgãos para transplante. “Era uma ideia realmente ambiciosa”, lembra Ejzenberg. “Fomos pesquisando, publicando e galgando avanços.”

O primeiro transplante foi feito em setembro de 2016, e deu certo logo de primeira. A paciente engravidou em abril de 2017 (de um embrião gerado por fertilização in vitro), e Luisa nasceu oito meses depois, 100% saudável. A consagração científica veio um ano depois, em dezembro de 2018, com a publicação do feito na revista Lancet, o periódico de maior prestígio da pesquisa médica no mundo. “É um trabalho com DNA 100% brasileiro, feito todo ele dentro do HC”, orgulha-se Ejzenberg.

Outros feitos históricos do HC nessa área incluem o primeiro transplante de coração do Brasil (em 1968) e o primeiro transplante de fígado intervivos do mundo (em 1988), entre outros.

(Veja reportagem completa no Jornal da USP)