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.Por Luís Fernando Praga.

O ano era 1095 d.C.

Joana era cristã e Lia, muçulmana. Joana era mãe de Carlos; Lia, de Abdala. Viviam a dura vida dos pobres (e dura vida das mulheres) enfrentando desafios semelhantes, uma na Europa, outra no Oriente Médio. Ambas tinham muita fé e a certeza de que Deus estava ao lado delas, protegendo-as, assim como a suas famílias. Ambas criaram seus filhos segundo os preceitos de suas respectivas religiões.

Carlos e Abdala eram jovens adultos quando surgiu a ameaça da guerra.

Joana orou para que não houvesse guerra nenhuma, Lia também, com todas as suas forças.

Apesar das orações das mães desesperadas, o rei e o sultão não chegaram a um acordo diplomático e a guerra tornou-se inevitável.

Joana orou para que Carlos não fosse convocado e Lia fez o mesmo por Abdala.

O sultão e o rei precisavam do máximo de soldados dispostos a dar a vida pela causa do sultão e pela causa do rei.

Como ninguém é otário para entregar a vida em troca do enriquecimento pessoal de um monarca, os senhores da guerra alegaram que seria uma guerra santa, não em defesa dos interesses pessoais do rei e do sultão, mas em defesa dos interesses de Deus e de Alá.

Com a irremediável convocação de seus filhos, as mulheres de fé, Joana e Lia, oraram para que Deus cuidasse e amparasse seus rebentos para que nada de mal lhes ocorresse em batalha.

Primeiro morreu Abdala, depois morreu Carlos, depois foram morrendo a velha Joana, o rei, Lia e o sultão. Outros vieram. A guerra durou 400 anos e em 1492 as Cruzadas haviam matado 1.000.000 de fiéis guerreiros da fé; milhares de famílias foram destruídas, cidades pilhadas ou riscadas do mapa, registros históricos foram corrompidos e hoje, depois dessa Guerra Santa, cristãos e muçulmanos ainda oram com seus corações transbordantes de fé, e ainda se odeiam e matam em nome dessa fé poderosa…

Hideko amava Kenji e regularmente levava o pequeno bebê carregado no cangote enquanto colhia o precioso arroz. O pai de Kenji morrera antes de seu nascimento e a mãe era toda proteção à cria. Hideko fez das tripas coração para que Kenji estudasse e se tornasse um bom homem. Em 1939, Kenji era um jovem e forte agricultor; e a plantação de arroz de Hideko prosperava como nunca, mas o imperador, empossado de poderes divinos, convocou a população para uma guerra. Hideko havia abraçado a fé do Xintoísmo, como a maioria da população japonesa da época, e recitava mantras para que Kami (o deus, no xintoísmo) impedisse a guerra. A guerra ocorreu. Hideko clamou com todas as forças para que Kami protegesse seu filho e que esse não fosse convocado para a guerra, mas Kenji foi escalado e, no front, sobreviveu à guerra por 3 anos, graças às preces de Hideko, até que foi alvejado e morreu. Hideko não perdeu a fé e continuou contando com a proteção de Kami, até que, em 1945, Hideko morreu vitimada pelos efeitos de uma bomba atômica que aniquilou sua cidade. Não houve mãe xintoísta que não tenha se prostrado em orações para que aquela guerra terrível não tivesse ocorrido e matado seus filhos, mas morreram cerca de 900.000 japoneses na Segunda Guerra mundial.

Não houve mãe, por este mundo afora, que não tenha orado para que não houvesse a guerra, para que a guerra fosse abreviada e para que as mortes cessassem; apesar disso, morreram mais de 60 milhões de pessoas em decorrência da Segunda Guerra Mundial.

Por volta do ano 33 d.c., Maria, uma mulher de fé, implorou a Deus onipotente que não permitisse que seu filho fosse torturado. Apesar disso ele o foi. Um símbolo da rebeldia contra exploração, a truculência e os desmandos do Estado, diante de uma multidão de pobres, tementes a Deus e sedentos de sangue, foi crucificado, torturado e brutalmente assassinado.

Sempre houve uma pessoa de fé, uma mãe, um filho, uma avó, uma namorada chorando, orando e pedindo a Deus para que a morte não levasse precocemente seus queridos, mas a Rebelião Taipang (China / 1850-1864) matou quase 100 milhões; a Primeira Guerra Mundial matou cerca de 20 milhões entre 1914 e 1918, as Invasões Mongóis (Sibéria e Leste Europeu) fizeram perto de 70 milhões de mortos entre 1206 e 1324 e a Conquista da América pode ter matado até 137 milhões de pessoas, em sua maioria nativos indígenas que não se curvavam à fé europeia, entre 1492 e 1691.

Não parece irônico que o país que mais se envolve em conflitos bélicos pelo mundo e que mais faz dinheiro com armas de fogo diga, em suas notas de dinheiro: “Em Deus nós confiamos”? Não parece chacota pra quem morre? Não é uma afronta pra quem segue vivo?

Outro dia perguntei a amigos se imaginavam poder estar ofendendo a crença de alguém ao dizerem: “Deus lhe acompanhe”.

A maioria disse que não, e que, mesmo que alguém se sinta ofendido, tem a certeza de que está lhe desejando algo bom. Outra amiga ponderou: Depende. “Qual deus?”

Pois é: Alá, Kami, Jesus ou Tupã, o deus que não conseguiu proteger nossos índios do genocídio? O deus dos judeus? O deus dos satanistas? Só o hinduísmo possui mais de 300 milhões de divindades por quem algum fiel ora.

Por certo eu não me refiro ao deus que evitou as 60.000.000 de mortes da 2ª Guerra, nem ao que evitou o assassinato de seu filho na cruz, nem ao que obteve sucesso em dar fim ao conflito religioso entre muçulmanos e cristãos, nem ao que acabou com a fome e a miséria no mundo, nem ao que salvou a humanidade, porque nenhum foi capaz disso. 

Bem, eu não me ofendo com o “vai com Deus”. Não há como se ofender com um traço cultural tão presente e profundamente enraizado em nossa população. Todo mundo diz, muitas vezes automaticamente, “vá com Deus”, “Fica com Deus”, “Deus me livre”, “Graças a Deus” etc., mas, é preciso enxergar, nem sempre todos têm as melhores intenções…

Entretanto, se não me ofendo, já começo a me incomodar com a situação. Eu não sou um teísta, não deposito fé num deus, não espero que algum deus possa resolver algum de meus problemas nem qualquer problema da humanidade e, por não ser teísta, sou, sim, em diversas ocasiões, colocado à margem na sociedade cristã brasileira.

A tendência é pensarem que estou sempre prestes a fazer alguma malvadeza ou uma safadeza, porque, se não tenho deus no coração, não tenho escrúpulos, não tenho honra, não tenho palavra nem amor ou respeito.

É, acho que já passou da hora de nos incomodarmos com isso, todos!

Nós, os não teístas, não surgimos hoje. Sempre houve, em qualquer sociedade, quem não se deixasse influenciar pela possibilidade de que exista um Deus todo poderoso no comando do Cosmo, do planeta, dos bichos, do resultado do futebol, das vidas humanas…

Uma breve lista de não teístas que já habitaram ou habitam este planeta e que tiveram, de uma forma ou de outra, a opressão religiosa limitando suas vidas envolve nomes como Alexander Graham Bell, Aristófanes e Albert Einstein; Barack Obama, Bruce Lee, Bill Gates e Bertold Brecht; Charles Chaplin, Cândido Portinari e Confúcio; Darci Ribeiro, Demócrito e Dráuzio Varela; Epicuro, Érico Veríssimo e Eduardo Galeano; Fernando Pessoa, Frida Kahlo e Friedrich Nietzsche;  Graciliano Ramos, Getúlio Vargas e Giuseppe Verdi; Heráclito, Henri Matisse e Herbert de Souza (o Betinho); Ivan Pavlov, Ítalo Calvino e Isaac Azimov; José Saramago, James Joice, José Pepe Mujica e Julian Assange; Karl Marx, Keanu Reeves e Kant; Linus Pauling, Leonardo DiCaprio e Lily Braun; Manoel Bandeira, Mark Twain e Milton Santos; Neil deGrasse Tyson, Noam Chomsky e Nehru; Orson Welles e Oscar Niemeyer; Paul McCartney, Pablo Picasso; Quentin Tarantino; Rafael Nadal, Rosa de Luxemburgo e Raul Seixas; Salvador Dali, Simone de Beauvoir e Sigmund Freud; Thomas Huxley e Tariq Ali; Umberto Eco, Virginia Wolf, Vincent van Gogh, Woody Allen, Zélia Gatai, uma multidão de anônimos, eu e, por que não, você?

Nós podemos aceitar que existe uma infinidade de forças acima da nossa, que somos uma forma de vida imperfeita, insegura, que flutua sem controle pelo universo a bordo de um grão de areia, nós não somos “os tais”, só somos todos, mas podemos ser muito mais do que somos se formos muitos além do que somos. Nosso grão de areia pode ser um lugar melhor do que é.

Nós, apesar de não teístas, podemos ser bons. Também podemos ser maus e até podemos ser bons e maus ao mesmo tempo, mas podemos ser bons e não dependemos de crer em Deus pra isso.

Nós podemos acreditar que a solidariedade e o amor nos fortaleçam enquanto espécie e sociedade, podemos ser empáticos e sensíveis com as demandas alheias, podemos exaltar a natureza e lutar por um mundo sustentável, podemos ser tolerantes com os diferentes e podemos, principalmente, enxergar que jamais um deus irá impedir que uma tragédia ocorra, se somos nós, a humanidade, que percorremos, autônomos, com as nossas próprias pernas, às vezes marchando armados, às vezes batendo no peito e ostentando fé em deus, os caminhos que nos trouxeram à trágica posição em que a história humana nos faz inseridos hoje.

Em outras épocas, matavam-nos, queimavam-nos em fogueiras em nome de Deus, encarceravam-nos, torturavam e matavam nossas famílias, pelo simples fato de não seguirmos a cartilha de teístas e religiosos.

Nós não seguimos a cartilha dogmática de nenhuma igreja ou organização religiosa, nós seguimos a nossa consciência.

A Consciência humana não é algo já concluído, do qual se possa fazer uma estátua e ficar apreciando e aprendendo com ela. A consciência é mutável, moldável e se desenvolve através de nossa interação com o meio.

Ah, o meio…

Um meio onde o medo de desrespeitar a Deus exerce influência tão fundamental sobre cada atitude humana é um solo árido demais para que germine a nossa natural dúvida existencial.  

Enquanto o medo de enfrentar os dogmas e de confrontar as convenções sociais de uma sociedade tão adoentada superar a curiosidade natural e a necessidade de se questionar tudo aquilo que não nos parece convincente, os não teístas continuarão sendo uma ridícula minoria.

Já num meio mais livre, onde qualquer livro possa ser lido, onde lideranças naturais, comprometidas com o bom desenvolvimento da sociedade (os pais, por exemplo) orientem na educação e nas primeiras incursões das crianças à leitura, onde evidências científicas e técnicas reconhecidamente pertinentes, úteis e essenciais para que a vida transcorra dignamente  cheguem ao conhecimento humano antes da ideia de se submeter ao poder de Deus, talvez um número maior de consciências opte por seguir o caminho de uma vida não teísta.

As consciências formadas num meio transformado pela violenta imposição religiosa, como eram a Europa medieval e as Américas recém-colonizadas, são consciências majoritariamente teístas, moldadas à força e pelo medo, não por qualquer evidência da existência de Deus.

O meio em que vivemos hoje é resultado daquilo que foi construído por seres humanos cujas consciências foram moldadas nas circunstâncias acima, geração após geração.

Questionar o mundo que essas pessoas nos entregaram é uma obrigação de vida para uma pessoa cuja consciência se pareça com a minha. Enxergar e demonstrar quem mais perdeu e quem mais foi privilegiado por esse modelo de mundo também me soa como uma obrigação, assim como buscar e apresentar opções a esse modelo.

Recentemente, em nome de Deus (até no slogan), o povo pobre brasileiro foi às ruas contra um “inimigo diabólico”, elegeu um militar (de baixa patente, altamente religioso e preconceituoso), conquistou o direito de armar a sociedade e perdeu um sem número de direitos civis previamente adquiridos.

Nós fomos às urnas, escolhemos voluntariamente, xingamos nossos adversários de coisas ofensivas, as quais não podemos provar, criamos um clima de animosidade e guerra, e, mais uma vez, não será Deus nem serão as orações de nossas mães que nos livrarão das mortes violentas reservadas para essa guerra.

Vivemos um momento em que cristãos brasileiros vão às ruas comemorar o tempo de uma ditadura sanguinária, algoz da liberdade e torturadora.

Como sempre, não será Deus quem nos erguerá pelos ombros, nos girará em 180º e nos colocará no caminho oposto ao que nos leva à guerra, à matança, à miséria e à injustiça social.

Não serão Deus ou as orações de nossas mães que abrirão nossas mentes para a questão: “a quem realmente interessam a miséria humana, a alienação, o fanatismo religioso, os rebanhos, os exércitos e as guerras?”.

Não será deus nem Deus que nos colocará no caminho do amor e não é deus o culpado pela nossa aparente aversão a esse caminho.

Não será Deus que trará o alívio a nossas dores e medos mais reais; muito pelo contrário: ou seremos nós mesmos ou não será ninguém.

Qualquer teísta de mente mais livre e aberta é capaz de abandonar o caminho da intolerância e do fanatismo e adotar o caminho do amor racional. Muitos já o fizeram e fazem, e são bons exemplos humanos para mim, um agnóstico (ou ateu, ou não teísta, como queiram).

Você pode ir com Deus, trilhar o caminho do amor humano, e será muito amado e bem-vindo, mas, por ora, sem a menor intenção de ofender e com a máxima fé em nossa infantil espécie humana, o que sugiro é: “Não foi graças a deus!”; “Vá sem deus!” e “Fique sem deus!”.

Luís Fernando Praga mantém a Coluna Flexível com crônicas em prosa e verso, além de atuar como médico veterinário.