Em São Paulo – Obras do artista catalão Antoni Tàpies (1923 – 2012) podem ser vistas na Galeria Bergamin & Gomide de 12 de março a 27 de abril. Com cerca de 13 obras produzidas a partir de 1970, a Bergamin & Gomide é a segunda galeria brasileira a exibir o artista – a primeira e única vez em galeria privada no Brasil aconteceu em 1995. Tàpies também participou da II Bienal de São Paulo, uma das mais importantes mostras até então realizadas sobre arte no século 20, que apresentou ao país 65 obras de Paul Klee, mais de 50 obras – entre pinturas e gravuras – de Edvard Munch, 20 obras de Mondrian e ofereceu uma sala especial a Calder. Nessa Bienal, o MoMA trouxe Guernica, de Picasso.

Antoni Tàpies, Díptic de la sabata, 1988

Autodidata, aprendeu sozinho a desenhar e a pintar ainda na escola e, na adolescência, teve seu primeiro contato com a arte contemporânea. Os passos iniciais como pintor foram dados no surrealismo, muito influenciado por Paul Klee e Joan Miró mas foi uma passagem efêmera e logo o artista passou a desenvolver seu estilo com a pintura matérica, uma tendência pictórica difundida após a Segunda Guerra, onde o emprego de materiais não-artísticos passaram a ser incorporados nas obras. Tal informalismo, nada mais é que um “estilo” que substituiu a arte formal dos anos 1940/1950 e que só faria sentido se causasse espanto.

Com sólida formação intelectual – a literatura teve muita relevância em sua obra – Tàpies trouxe consigo o espírito catalão que lhe deu insumos para a construção de sua obra. Mas aborda também outras culturas não-europeias e temas diversos, dando-lhe nutrientes para o arcabouço de seus pensamentos e sua plástica. O artista bebeu nas fontes da mitologia, religião, história, ética, metafísica, ciência e em outras formas de expressão como a dança, a música e, principalmente, a caligrafia asiática – essa última muito presente em seus gestos criativos.

Em 1953, Tàpies começou a trabalhar com técnicas mistas, processo considerado mais original para o universo artístico, tendo sido um dos primeiros a desenvolver arte dessa maneira. Argila e pó de mármore passam a compor suas pinturas, além de outros materiais como corda, faca, objetos diversos, papel, barbante e farrapos. A reputação internacional de Tàpies já estava bem estabelecida no final dos anos 1950 e, décadas mais tarde, viria a ser um dos artistas mais revolucionários do século 20, precursor de linguagens, formas e materiais, se tornando o autor de um vasto legado para a história da arte.

“Acredito que toda arte contemporânea foi influenciada pela arte não ocidental. Eu, porém, cheguei à arte oriental através de meu interesse pela ciência, em um momento em que estava curioso com a natureza, com a estrutura da matéria e com os problemas do espaço, do tempo e da causalidade. Tivemos uma espécie de decepção geral com a civilização ocidental. Ela nos levou a guerras terríveis e pegamos um pouco de birra da cultura ocidental; foi isso que me estimulou a estudar a filosofia e a cultura de outras civilizações, especialmente a da Índia, e de forma muito concreta a do budismo da China, a do taoísmo chinês e depois a do Japão”, revela Tàpies.

Toda a sua genialidade, estudos e conhecimentos o levaram a dar vida a materiais abandonados. Objetos descartados passam a ter novos significados em suas obras. Tudo adquire novas funções nas esferas “mágicas” de seus quadros e se articula sem aparente ordem ou racionalidade. Um escândalo à época, final dos anos 1940, Tàpies aplicava areia ou terra às pinturas à óleo, “de maneira muito espontânea e um pouco inocente, e foi um exagero…”, de acordo com o próprio artista.

Antoni Tàpies também cria uma identidade artística por não conceber pinturas isoladas, mas sim conjuntos, famílias de obras. “Assim que faço um quadro, coloco-o em seguida em outra sala. E o quadro seguinte que tenho que pintar, já o faço em função daquilo que foi o primeiro. Vou enlaçando as frases, digamos, e no fim está um conjunto em que tem uma harmonia expressiva, eu acho, e uma lógica interna. Ou seja, preocupa-me mais o desenvolvimento da arte em geral, e não o de um quadro de cada vez”, elucida o artista em entrevista concedida à Fabio Magalhães, curador da exposição de Tàpies no Centro Cultural Banco do Brasil em outubro de 2004, reproduzida no livro ‘Antoni Tàpies – São Paulo: CCBBSP, 2004’.

“A trajetória de Antoni Tàpies (1923-2012) ocupa uma posição de enorme relevância no contexto da arte internacional durante a segunda metade do século XX.

Na Europa, a sua obra participa daquelas correntes que buscaram novas maneiras de expressão diante do esgotamento do surrealismo, abraçando gramáticas baseadas no descobrimento de uma gestualidade distinta, porém corporal, e na utilização de materiais até então inéditos no campo da pintura. Por outro lado, também dentro de uma certa inclinação europeia típica dos anos sessenta, Tàpies desenvolveu um interesse cada vez maior pelas culturas não-ocidentais, especialmente pela poesia, pensamento e a arte chinesa e japonesa.

Em outro sentido, especialmente no âmbito norte-americano e a partir dos anos cinquenta, o trabalho do artista catalão representa um contraponto ao expressionismo abstrato americano, um grito de protesto diante da asfixia política e cultural na Espanha durante e após a Guerra Civil.

Tudo isso nos levaria a dizer que Tàpies assumirá o manto das duas figuras tutelares na arte espanhola: Pablo Picasso e Joan Miró; dois “mestres” da vanguarda que simbolizavam, respectiva e esquematicamente, a tradição irreverente diante dos totalitarismos própria de Picasso, assim como a pulsão erótica da sua pintura, porém também, seguindo o exemplo de Miró, a consciência contestatária do povo catalão.

Esses últimos traços sintetizam um dos aspectos que mais determinam a obra de Tàpies: o seu compromisso ideológico, estético e social. Podemos dizer que o pintor se inscreve naquelas gerações de intelectuais, muitos de origem burguesa, que na Alemanha, na França e na Itália, tentaram construir diferentes esferas públicas diante dos poderes ditatoriais ou dos regimes policiais que governavam o Velho Continente depois da Segunda Guerra Mundial.

Desde a Escola de Frankfurt até o movimento de maio de 68 na França, do Potere Operaio a Primavera de Praga, o pano de fundo dos anos sessenta e setenta exerceu uma influência fundamental na trajetória de Tàpies, que durante esses anos não somente aproveitaria a sua repercussão nos fóruns artísticos mundiais para concretizar numerosas obras que denunciavam a falta de liberdade, a censura e as repressões políticas da ditadura do general Franco, mas também desenvolveu então um incessante – e às vezes excessivo – trabalho como figura pública através de escritos jornalísticos, ensaios teóricos e varias polêmicas que o converteram no paradigma da dissidência na Catalunha.

De certa forma Tàpies representa essa solidariedade internacionalista da esquerda, erudita e de classe média que, nascida a partir do trauma do nazismo, desdobrou-se intermitentemente pela Europa e América do Sul durante toda a Guerra Fria.

Esse projeto de refundação do pacto social tem o seu eco em um tipo de pintura que salta das subjetividades até o empenho em retratar a parte traseira do mundo, como se no mesmo quadro se pudessem reunir beleza, fratura política, emoção existencial e uma cartografia do instante.

A potência da obra de Tàpies se encontra na viagem que ela nos propõe, na sua travessia do apocalipse até a apoteose e vice-versa. Não há niilismo nas suas telas, objetos ou esculturas; ao contrário, há um convite, às vezes sutil e às vezes árido, para se reconectar com o mundo, para desordenar as ordens estabelecidas à nossa custa e através do nosso sacrifício.

Tàpies aspira, certamente sem explicitá-lo, a uma espécie de humanismo que já não se extingue entre o apolíneo e o dionisíaco, entre a razão e o sonho, entre a poesia e a ideologia. Um humanismo detectável nos elementos mais modestos e até mesmo nos mais miseráveis, nos desejos mais inconfessáveis, na carne do mártir, nas asas dos anjos e na panela onde o operário serve a sua comida.

No momento atual, onde a complexidade parece estar em pleno processo de esvaziamento, onde sob a bandeira do senso comum são perseguidas a discórdia e a utopia, a obra de Tàpies revela-se importante e necessária – hoje mais do que nunca. Importante porque contribui a que reimaginemos o valor da arte e o sentido das palavras, e também como a oposição a um consenso pode ser um momento definitivo; necessário porque lá onde se criam dogmas em aparência inalteráveis, também palpitam, escondidas, as asperezas do real.

A exposição na Bergamin & Gomide reúne obras absolutamente emblemáticas dos anos 1970 até o início dos anos 2000. Algumas delas tem sido pouco representadas em contextos expositivos; outras ilustram à perfeição certas rupturas-chave na trajetória de Antoni Tàpies.

Vistas em conjunto, trata-se de uma coleção ou antologia que transita por todas as vertentes mais substanciais do artista, pela escultura, tela, instalação e pelo papel. Também estão aqui todos os seus materiais prediletos: verniz, pó de mármore, espuma, madeira…

Dizem que cada quadro de Tàpies é um resumo de quadros anteriores e de obras que estão por vir, que em cada tela o pintor narrava uma “vida” passada e futura. Essa exposição tem algo de epopeia artística, de biografia política e pessoal”. (Valentin Roma)

“Antoni Tàpies”

Visitação: de 12 de março a 27 de abril

Seg. a sex., 10h/19h; sáb., 10h/15h

Entrada gratuita

Galeria Bergamin & Gomide – Rua Oscar Freire, 379, loja 1 Tel: 11 3853-5800 – www.bergamingomide.com.br