(imagem pic2.me)

.Por Luiz Fernando Praga.

A chuva fina prendia Robertinho ao aconchego da cama por ainda mais tempo naquele dia.

Vinícius treinava forte, cheio de motivação e atitude, mas com poucos sonhos, pois a realidade já era a de um sonho impossível, atingido em tão tenra idade.

“Trabalhar pesado para alcançar os resultados, meritocracia, superar o desafio de ser um adolescente preto, pobre e periférico, ser mais forte que o preconceito e a desigualdade, ter o que comer no fim do dia, poder ajudar a família… Quem sabe, ser um novo Vinícius, ou até mais que ele…”. Esse era o pensamento do sonolento Lucas, enquanto seu corpo ia despertando com o chacoalhar bruto do ônibus.

A bola, “suada” da grama molhada, já subia e descia, ao ritmo hipnótico das embaixadinhas, quando Émerson viu o ônibus se aproximar e resolveu descansar a “gorduchinha” debaixo do braço para cumprimentar seu amigo que apeava do coletivo, com sono, uma mochila velha nas costas e um sorriso de paixão pela bola, pela grama e por tudo o que envolvia o futebol quando ele é jogado no campo.

 Suco de laranja, croissant, geleias, frutas, presunto, queijos, leite, café, ovos mexidos e todo o cuidado para não deixar cair um pingo na toalha, impecavelmente branca, era o que Janete colocava na mesa do desjejum de Procópio, que mexia no celular, indiferente à presença da empregada.

Roberto Parker de Lima Procópio gostava de dar oportunidades pra essa gente; e Vinícius era um exemplo vivo de quem conseguiu aproveitar uma das oportunidades oferecidas pelo generoso Procópio.

Roberto Parker de Lima Procópio Júnior, o Robertinho, gostava de dormir até mais tarde. Ele fez um gesto com o dedo do meio, virou-se e cobriu o rosto quando Janete foi lembrá-lo de acordar pra ir à escola.

Ao meio dia, o inverno europeu fez Vinícius sentir um pouco de saudades do Rio. O jovem craque saiu do treino diretamente para seu apartamento luxuoso, onde alguma Janete já deixara a mesa posta para o rico almoço daquele ex-menino pobre, que, agora, celular em mãos, movimentava suas redes sociais e conversava com amigos da longínqua comunidade em que sobrevivera e crescera no Brasil.

Trabalhar pesado rendia resultados: Lucas comia, como se fosse um rei, o arroz com feijão e filé de frango, oferecido pelo clube aos atletas da base; e Émerson, entre uma garfada e outra, o convidava para passar o final de semana em sua casa.

_ O senhor me desculpe, seu Roberto, mas ele não quer acordar…

O empresário e “cartola” ergueu os olhos azuis do aparelho que empunhava para olhar, com raiva, depois com desprezo, para a negra à sua frente. Caminhou até o quarto e ordenou que Robertinho se apressasse, pois o motorista já o aguardava com o carro ligado.

Com as mãos sob as cobertas, Robertinho repetiu, para o pai, o mesmo gesto que Janete vira muito bem minutos antes e, finalmente, partiu pra aula da tarde do cursinho pré-vestibular.

Vinícius tivera pouco estudo, mas era inteligente, interessado e já aprendia as primeiras lições de espanhol, pra se fazer entender, além da linguagem da bola, em seu novo país.

A tarde era de mais treino pesado e Lucas recusava o convite de Émerson enquanto davam intermináveis e exaustivos piques, lado a lado, no gramado.

Émerson não via a mãe havia 15 dias e isso era doloroso demais para um menino que até então só havia recebido carinho e cuidados daquela mulher. Hoje ele dormiria em casa, abraçadinho na mãe, sem luxos, sem janelas, sem forro, só no contrapiso, sem toda a estrutura do centro de treinamentos do clube, mas com o cheiro bom do seu lugar, de sua infância; com a mãe que ele amava, de quem ainda dependia e a quem tinha por objetivo, um dia, oferecer todo o conforto possível.

Robertinho era popular e fazia sucesso com as garotas do cursinho. Lá não tinha preto e Robertinho podia fazer as piadas e os comentários que evitava fazer em casa. Janete já durava mais de 1 ano no emprego e seu pai deixara bem claro que não queria ter o trabalho de contratar outra empregada por causa do comportamento do filho.

Depois da bem-vinda siesta, Vinícius partiu para a concentração, num hotel 5 estrelas. Amanhã seria o grande clássico e o mundo todo estaria de olho na nova estrela do time!

Lucas não tinha pai nem mãe. A irmã mais velha zelara por ele a vida toda, como uma mãe que não tivesse morrido pela violência do morro, como fez a original. Lucas também sentia um aperto no peito naquele fim de tarde, um misto de independência e medo. Pela primeira vez dormiria longe da irmã, no apartamento container reservado aos atletas da base do time.

O céu escurecia de nuvens pretas o horizonte, enquanto o preto Émerson arrumava sua matula, cheio de saudades.

Robertinho conversava, animadamente, com os colegas do cursinho, argumentando que bandido bom é bandido morto, enquanto aguardava, preocupado com a tempestade, a chegada de Antonio, com a Mercedes. “Se eu me molho, aquele preto filho da puta tá fodido com meu pai!”, pensou.

O pai de Robertinho era um homem de negócios, muito bem sucedido, e não gostava de resolver picuinhas de funcionários. Procópio acabara de realizar duas grandes transações, que engordaram os cofres “do clube” em mais de R$300.000.000,00. Uma das negociações tinha nome de Vinícius, o menino que jogaria amanhã contra o Barcelona e que, até 10 meses antes, vivera no mesmo container, agora dividido por Lucas, Émerson e outros 2 meninos.

Procópio era um homem preocupado. Sabia que vivia numa cidade violenta onde a criminalidade era organizada e poderosa. Sabia que a fiscalização quanto a sonegação fiscal e lavagem de dinheiro estava intensificada naqueles dias e precisava manter bem “lubrificadas” as suas boas relações. Sabia que os containers onde deixava as crianças dormindo, antes de vendê-las por milhões, eram irregulares e precários, mas enquadrar-se às exigências legais era dispendioso e dispensável naquele momento tão atribulado. Sabia que bandido bom era bandido morto e colocava todas as suas fichas na capacidade do novo presidente do país em acabar com o crime e a corrupção.

Vinícius “twitou”; conversou com seus antigos colegas de container no Brasil e usou o celular pela última vez antes de dormir cedo; prudente, atleta, profissional exemplar, 100% comprometido e concentrado para o clássico de amanhã.

Lucas tomou um banho caprichado e revigorante depois do treino puxado. Amanhã a rotina exaustiva se repetiria. Entrou naquele container que, a ele, mais parecia uma passagem entre a favela e a Europa. Era mais “chique” e espaçoso que a sua casa e tinha bons beliches com boas roupas de cama. Tinha o Jorginho Goleiro pra conversar. Era quente e abafado, mas, pasmem, tinha até ar condicionado.

O presidente do clube era muito zeloso e preocupado com o bem-estar de seus jovens atletas.

Émerson, ao som de trovoada, entrou no ônibus que o chacoalharia até sua saudosa comunidade para que matasse a saudade que sentia de sua mãe.

A mãe de Émerson esperou Robertinho voltar do cursinho e serviu o jantar para o filho do patrão milionário. Janete lavou a louça, deixou a cozinha impecável e partiu pra casa, mais uma vez atrasada e exausta, mas rindo à toa, porque iria rever seu único filho depois de 15 dias.

Robertinho comeu como um padre, deitou-se no sofá e esperou Janete sair. Depois de algumas ligações, convocou Antônio, o motorista preto, e saiu de Mercedes Bens em direção ao morro.

Um raio crispou o horizonte do Rio de Janeiro. 

Em Madrid, Vinícius acordou e fez o sinal da cruz, ansioso, focado, otimista e bem disposto! Uma fera, faminta de bola, pra enfrentar o Barça.

Émerson desceu do coletivo, fez o sinal da cruz, tirou a camisa e saiu correndo pra ver se encontrava Janete antes que a tempestade o alcançasse. Não deu tempo…

Alguma falha elétrica nas instalações do container onde colocaram Lucas e o Jorginho Goleiro para dormir, aquele container que não possuía laudo do Corpo de Bombeiros para funcionar como alojamento, porque é oneroso e dispensável, gerou uma pequena faísca no aparelho de ar condicionado. Houve um incêndio e o fogo se espalhou pelos outros containers, onde outros potenciais bons negócios de Procópio também dormiam inocentemente.

Lucas ainda acordou em meio à fumaça tóxica, fez o sinal da cruz, pegou o celular a fim de ligar para a irmã, mas não deu tempo… O menino morreu queimado e nunca mais foi pra sua casa.

A irmã de Lucas perdeu sua maior preciosidade naquele incêndio…

O goleiro Jorginho e mais 5 adolescentes pretos, pobres e suburbanos, também morreram carbonizados, além de outros 3 funcionários pobres e suburbanos do clube.

Horas antes, encharcado de chuva, Émerson passava correndo pela Mercedes estacionada, onde o jovem Robertinho negociava algo com outros jovens, bem diferentes dele, ali na sarjeta. Uma viatura vinha descendo e o Cabo Messias não teve escolha nem culpa: ao ver o jovem preto e sem camisa, próximo à Mercedes, evadindo-se da cena em desabalada carreira morro acima, foi preciso atirar e seguir a ronda.

Robertinho, após concluir o que fazia, mandou Antônio seguir pra Zona Sul. De passagem desceu o vidro da Mercedes e cuspiu no corpo de um rapaz preto que agonizava na rua, fechou a janela, fez o sinal da cruz e partiu.

Antônio fez o sinal da cruz e sofreu calado tudo o que vira e ouvira dentro daquele carro.

Janete aguardou ansiosa pela chegada de seu filho, por duas horas, até que vizinhos chegaram com o corpo baleado de Émerson, atingido na cabeça em tão tenra idade.

Acontece… Mães perdem seus filhos amados para a violência todos os dias.

A noite estava só começando para Robertinho, que rodou pela cidade com Antônio até altas da madrugada. Voltando pra casa, puderam apreciar a fumaça preta que manchava o nascer do Sol daquele que prometia ser um lindo dia de céu azul naquela bela cidade.

Robertinho chegou em casa tão tarde que sua mãe, que aguardava, aflita, no hall de entrada, fez o sinal da cruz, chorou e agradeceu a Deus. O rapaz entrou agitado, ignorou a mãe e foi pro quarto. No caminho estranhou a presença do pai, acordado assim tão cedo.

Procópio, já avisado do sinistro, contabilizava os prejuízos; e, enquanto planejava os investimentos para uma nova safra de craques de bola, pensava: “Isso não pode mais acontecer!” Correndo os olhos pelas notícias da internet, de passagem leu sobre um tal Émerson Hilário da Silva, menor de idade, suspeito de envolvimento com o tráfico de drogas, morto em confronto com a polícia na noite anterior. “Morre, maldito!”, pensou Procópio.

Vinícius foi decisivo ao fazer gol de desempate que daria números finais ao maior clássico do futebol espanhol.

Do outro lado do Atlântico, o país que criou Vinícius e todos os outros personagens dessa ficção amanheceu de luto e em comoção.

Mas não adiantava mais “chorar sobre o leite derramado”, essas fatalidades acontecem e agora só restava deixar nas mãos de Deus, para que Esse desse o devido encaminhamento, para o céu, àquelas almas carbonizadas; e também cuidasse de confortar as famílias.

Quanto ao Émerson, pouco se falava sobre aquele marginalzinho drogado. ”Bandido bom é bandido morto, e quanto mais cedo matarmos o meliante, melhor!” “É um bandido a menos no Brasil e um preto a mais para o capeta cuidar!”, comentava o povo, cristão e confiante na capacidade de gestão do novo presidente, muito cristão, eleito poucos meses antes.

Janete não foi trabalhar naquele dia, mas Procópio tinha mais com que se preocupar. Demitiu a empregada indolente e tratou de voltar a atenção para a administração de seus negócios.

No dia seguinte, as manchetes já voltavam a abordar a esmerada atuação da justiça, na prisão do grande chefe do crime, acusado, por convicção do ministério público e do juiz, de tentar adquirir um apartamento e reformar um sítio ilegalmente. “Maldito barbudo comunista! Apodreça na cadeia!” bradava aquele povo hospitaleiro.

O importante é que Deus é pai, os tempos mudaram, a corrupção e a criminalidade estão sendo rigorosamente combatidas!

Tragédias acontecem… Agora é só negociar uma indenização “conveniente” com as famílias… pobres… e pretas…

Outros craques virão!

E segue o jogo… (sinal da cruz)