Democracia, revolução e antifascismo

.Por Sandro Ari Andrade de Miranda.

Boaventura de Sousa Santos, atento aos acontecimentos históricos, destacou que no início do século XX a humanidade foi inspirada por duas grandes esperanças de transformação: a democracia e a revolução.

(foto: caco argemi – cpers sindicato cc)

Mas ao contrário do que se esperava, no final do século XXI, ambas apresentavam como resultado o fracasso, deixando a sociedade órfã de alternativas. A revolução, que vinha empurrada pelos avanços dos séculos XVIII na França e nos Estados Unidos, acabou sucumbindo à burocracia. Já a democracia, que ficou limitada ao seu modelo liberal-formal, muitas vezes serviu como justificativa para a legitimação da opressão, como a ascensão de Hitler pelo voto na Alemanha de 1930.

Como solução, ele propõe uma reflexão, tendo como escopo a unificação dos dois modelos apesentando duas soluções dialéticas: “democratizar a revolução” e “revolucionar a democracia”.

Na verdade, a gênese destas duas alternativas pode ser encontrada no próprio século XX e a democracia participativa e um dos seus projetos mais reluzentes. Por outro lado, se expandirmos o foco, saindo da esfera de análise de Santos, é possível identificar exemplos de sucesso da democracia em alguns países, notadamente Finlândia, Noruega, Suécia, Dinamarca e na própria Alemanha, todos países que caminharam no sentido de garantir uma democracia com corte socialista ou social-democrata, mesmo mantendo o modelo produtivo capitalista.

Qual foi a solução adotada por estes países? A expansão dos serviços públicos mantidos pelo estado (modelo nórdico) e o fortalecimento da sociedade civil (Alemanha). Isto garantiu uma estabilidade, ao ponto do partido Socialista Sueco ter se mantido no poder por mais de 80 anos, mediante eleição concorrencial, pluripartidária e direta.

Mas a grande diferença destes países em relação aos demais, como podemos observar, foi a manutenção de um sistema político-social-econômico onde a cidadania é valorizada, com respeito aos direitos civis e sociais. Além disso, são países com fortes compromissos ambientais, ao ponto da Alemanha, administrada por partido conservador, avançar no projeto de transporte público gratuito, com ônibus elétricos, para reduzir as emissões atmosféricas.

Quanto ao fracasso na União Soviética, muitos dos problemas já haviam sido identificados ainda no início do projeto por figuras como Rosa Luxemburgo e Trotsky, em especial a burocratização dos sovietes que deixaram de ser instrumentos de participação para virar campo de mera legitimação, o aumento da repressão e a perda da liberdade. Hoje não podemos falar em processo revolucionário de verdade, com a restrição dos direitos civis e políticos. Outro aspecto importante a ser considerado pode ser encontrado nos “escritos de cárcere” de Antônio Gramsci: a hegemonia.

Hegemonia não significa tomar e manter o poder repressivo do estado. É, ao contrário, a construção de um projeto político pela base, com o enfrentamento das estruturas sociais que promovem a desigualdade.

Hegemonia, ao contrário da dominação, é algo perfeitamente compatível com a democracia e, portanto, algo que deve ser buscado no processo de democratização da sociedade. A estabilidade do “estado social sueco” ou do alemão só é possível em razão de uma legitimação social dos valores que prezam pela igualdade e pela distribuição.

Evidentemente não são modelos perfeitos, porque convivem com uma extrema direita racista que tenta resistir à democratização social. Mas a força dos ideais da democracia social ainda prevalecem sobre o conservadorismo, ou seja: “é possível preservar uma Alemanha com políticas sociais distributivas e conservação ambiental, mesmo com os conservadores no poder”. Entretanto, isto só foi possível porque a sociedade construiu mecanismos de resistência ao desmonte das políticas sociais, o que fortalece o “espírito democrático”, com certeza o maior ato revolucionário colocado em prática por estes países.

Curiosamente, no país onde nasceu um dos mais revolucionários instrumentos de fortalecimento da democracia por meio da participação social, o Brasil, recentemente seguiu o exemplo negativo da Alemanha de 1930 e sucumbiu ao fascismo através do voto.

As consequências negativas em termos de restrições democráticas, de defesa de direitos civis, políticos e ambientais já são perceptíveis, mas ainda são incalculáveis. O certo é que o seu enfrentamento passa, obrigatoriamente, por uma reorganização das forças sociais comprometidas com a democracia e com a “democratização da sociedade”, ou seja, precisamos ir muito além do modelo democrático liberal-formal.

O rearranjo atual das forças políticas, que deu liberdade ao conservadorismo e ao fascismo, não é barreira suficiente para a disputa de hegemonia, mas algumas mudanças de estratégia são necessárias.

Primeiro, o novo projeto alternativo deve colocar a pauta ambiental e a radicalização dos direitos civis no centro de qualquer proposta. São exatamente estes dois segmentos que mais tem apresentado resistência ao conservadorismo, especialmente feministas e ambientalistas. A segmentação de pautas, feminismos, LGBTIs, ambientalistas, antirracistas, povos tradicionais, não é um problema, mas uma virtude.

Segundo, é preciso um projeto de radicalização da democracia ou de “democratização da sociedade” e isto vai além da democracia participativa que é um pré-requisito. Inclui, também, a expansão do acesso aos serviços públicos e o enfrentamento dos elementos regressivos que promovem a desigualdade. Não é admissível, por exemplo, debater reforma previdenciária ou trabalhista enquanto o nosso sistema tributário continuar a ser alimento pelos pobres em benefício dos ricos.

Por fim, é preciso democratizar as estruturas partidárias. Não existe democracia sem partidos, mas estes devem se aproximar das suas bases sociais. Para tanto, a participação dos militantes é fundamental. Só é possível defender uma cultura democrática se esta existir na origem, com a diminuição dos centros de poder. Os modelos de centralização burocrática fracassaram e a construção de uma democracia radicalizada, com ampla participação social, efetivação de direitos civis e distribuição de riqueza é uma verdadeira revolução.