.Por Luís Fernando Praga.

Sou pelo bem-estar dos animais.

É, sou veterinário, lido com bichos todos os dias e zelo pela saúde e bem-estar de meus amigos pacientes, por prazer, por vocação e por amor à vida deles e à minha, muito antes das razões profissionais.

Mas há uma série de paradoxos e conflitos que me acompanham e que pretendo explorar agora, rasgando as amarras da hipocrisia e sendo cru, logo de cara:

Em situações terminais, associando conhecimentos teóricos e práticos à realidade de cada caso, com o aval de minha consciência e do proprietário do animal, realizo procedimentos de eutanásia a fim de interromper sofrimentos que já não respondem aos tratamentos.

Também já pesquei e já matei galinha e porco para comer. Apesar de meu amor e respeito aos bichos, eu os devoro. Como carne de animais que são criados em condições sofríveis e antinaturais, nascidos para virarem comida e, depois, dejetos de gente.

De uma forma ou de outra, há hipocrisia em meu discurso, já que minha atitude diária contribui para a perpetuação de uma situação de maus-tratos e sofrimentos para com os seres que amo; um terror amparado pela ignorante prepotência humana e legitimado pela cultura capitalista do lucro a qualquer custo.

O fato de eu comer carnes está ligado a um hábito cultural e a campanhas mercadológicas, das quais também não sou imune, mais que à minha crueldade. Ensinaram-me quando criança, não questionei, aprendi e passei a gostar. Hoje sinto prazer e dificuldades em parar e até em reduzir o consumo. Creio que, pelas influências que tive e tenho, e por apego aos meus prazeres e vaidades, eu não tenha despertado o suficiente para a vital necessidade de uma transformação.

Entendo que preciso mudar, quero mudar e me comprometer com tal transformação, e toda ajuda será bem-vinda.

Por outro lado, a hipocrisia, a crueldade e os maus-tratos possuem várias facetas:

Na rotina da clínica veterinária vejo gente fazendo dinheiro com vidas de cães e gatos; cadelas em estado lastimável, utilizadas como reprodutoras, cio após cio; animais amontoados em ambientes ridiculamente pequenos e insalubres, gerando lucro a criadores que vendem filhotinhos para gente que, como eles, dizem amar os animais.

Animais também sofrem pela ignorância de gente que desconhece o manejo adequado e as noções de posse responsável; sofrem pela ignorância de quem vê seu bicho como um escravo para guardar a casa e sofrem pelas mãos de quem os “ama” e, por isso, trata bicho como gente, sem se dar conta do tamanho dessa agressão.

Há, também, o sofrimento infligido pelo prazer de ver sofrer, aquela arrepiante crueldade gratuita, construída e alicerçada sobre a fragilidade de uma sociedade ignorante quanto ao respeito à vida e inconsequente quanto a seu desrespeito.

Lido com protetores de animais, que promovem ações voluntárias de proteção, resgate, adoção e campanhas de castração, mas, mesmo entre os que se dizem “protetores”, há quem transfira animais resgatados para uma situação ainda pior, há quem “resgate” animais para revender e há os “protetores” que abandonam animais nas clínicas.

Ações de proteção, repressão aos maus-tratos e conscientização são sempre louváveis, mas, com mais de 20 anos de profissão, não enxergo, em termos estatísticos, que haja menos animais abandonados ou sofrendo maus-tratos. Vejo um exaustivo trabalho de enxugar gelo, que toma o tempo e a vida das pessoas e que, certamente, auxilia os animais, mas também garante uma satisfação pessoal a muita gente, traz um sentido a suas vidas e representa uma causa pela qual lutar; entretanto, não toca o cerne da questão.

Quem maltrata os animais?

Por quê, apesar de tantas ações de proteção e tantas ONGs especializadas, as aberrações de crueldade continuam acontecendo? Por quê, apesar da evolução na legislação internacional no que diz respeito ao bem-estar animal, a bancada do boi no congresso nacional consegue “flexibilizar” normas que restringem práticas de maus tratos contra animais de produção? Por que o Porto de Santos, em janeiro de 2018, voltou a embarcar animais vivos (27 mil bezerros) para abate, transportados nas piores condições imagináveis? Por que muitos protetores dos animais votam em deputados da bancada do boi? Por que pessoas que dizem amar seus passarinhos os mantêm enjaulados?

Amar é querer bem. É preciso diferenciar de querer ter.

Por que certas pessoas surtam, incapazes de aceitar a perda por uma morte natural, por idade ou doenças incuráveis, mas são favoráveis à pena de morte e se orgulham de seu desprezo pela vida de seres humanos?

O epicentro do problema, mais uma vez, é nossa ignorância. Tanto eu, que como carne e alimento a indústria da matança indiscriminada, quanto o cidadão de bem, e bem armado, que atira em macacos para evitar a febre amarela, quanto quem, por amor, dá chocolate e mata seu cachorro, ou o médico que espanca seu gato nas crises de depressão, ou quem resgata 10 cachorros e os enfia num apartamento pequeno, sem ver que sofriam menos onde estavam antes; todos somos vítimas de alguma ignorância e cúmplices da mesma crueldade que, efetivamente, não temos conseguido combater.

Quem maltrata os animais é o bicho homem, e todo tipo de bicho homem é capaz de fazê-lo.

O fato de nos definirmos como “racionais” ou “feitos à perfeição divina” e, apesar disso, sermos a espécie que mais comete idiotices e atrocidades no Planeta, deveria, no mínimo, nos trazer muita vontade de melhorar…

Há muito em que melhorarmos; e o primeiro passo é identificarmos nossas ignorâncias.

Somos imperfeitos e nem por isso devemos nos aniquilar porque uns se acham mais perfeitos que outros. Já fazemos isso há séculos, nos pisoteando, competindo como zumbis, nos odiando, nos segregando, nos cegando, indiferentes ao sofrimento dos bilhões de humanos excluídos e, dessa forma, perpetuamos nossa estupidez e nossa insensibilidade à vida.

A Terra tem sido uma mãe generosa e tolerante para essa espécie pretensiosa e de atitudes insustentáveis.

De todas as nossas ignorâncias, a mais prejudicial aos animais, ao Planeta e a nós mesmos reside no fato de não darmos o devido valor à vida.

Nenhum dinheiro, prazer gastronômico ou preconceito pode justificar a banalização da vida, e enquanto banalizarmos até a vida de nossos semelhantes, nenhuma outra espécie estará segura perto de nós.

Vidas precisam deixar de ser tratadas como produtos!

Devemos começar, o quanto antes, a pensar a vida de outra forma. Devemos permitir a vida, respeitá-la indistintamente e incentivá-la em sua plenitude! Precisamos entregar dignidade, liberdade e oportunidades àqueles que não as têm, àqueles de quem roubamos, justamente por sermos coniventes com um sistema que incentiva o enriquecimento, a competição e a vingança.

Não se trata de ser “bonzinho”, mas de ser coerente, de se saber ignorante e de acreditar na evolução.

Trata-se de ter conhecimento do estrondoso impacto ambiental (um impacto sobre toda a vida no Planeta) representado pela atividade pecuária como ela é hoje. Trata-se de sermos menos egoístas.

Trata-se de não nos tornarmos insensíveis ao fato de que 24.000 pessoas morrem de fome por dia no mundo, 9 milhões ao ano e de sabermos que 50% do alimento produzido no mundo é desperdiçado.

Trata-se de não nos cegarmos à realidade de que, se desperdiçarmos apenas 0,1% da carne que o mundo produz (percentual subestimado), isso significa que 50 milhões de pintinhos, 1 milhão de leitõezinhos, 300 mil bezerrinhos, 800 mil cabritinhos e ovelhinhas nascem por ano e não alimentam ninguém, mas têm 3 destinos certos: o sofrimento em vida, o abate e o lixo.

Trata-se de enxergarmos que estamos tratando humanos pior que bichos, que não ligamos para os irmãos que morrem na fome, na miséria e que adoramos os tênis, as roupas e os eletrônicos produzidos por crianças que não conhecem a infância e por gente tão escravizada quanto as reses, cujo destino é o abatedouro. Desrespeitamos os direitos políticos e os direitos básicos das pessoas mais sofridas, para defendermos os interesses dos senhores da produção, dos senhores da grana e da guerra, dos nossos senhores que lucram com vidas.

Trata-se de recebermos o choque de realidade que nos diga que estamos deixando de evoluir e nos acomodamos ao passado quando nos omitimos para com as terríveis crueldades que cometemos. Trata-se de adquirir a consciência de que não precisamos mais cometê-las.

Trata-se de perceber que, se estamos embrenhados num retrocesso tão cruel, é por aceitarmos as migalhas que este sistema nos permite catar do chão, é por tolerarmos que este sistema faça o que bem entender com os outros, desde que me permita “prosperar”.

Não há prosperidade na injustiça, não há prosperidade no ódio, não há prosperidade no preconceito nem no apego à ignorância, não há prosperidade na conivência com a crueldade e jamais haverá prosperidade onde a vida não seja o bem de maior valor.

Trata-se de permitir que o ser humano se instrua adequadamente e de perceber que a instrução para a competição não é a instrução adequada. Trata-se de acreditar que, se o ser humano fosse educado para a autonomia, o respeito, a cooperação e a sustentabilidade, ninguém compactuaria com maus-tratos.

Trata-se de enxergar que o capitalismo não tem nenhum interesse em espalhar a cultura do amor pela humanidade, pois ele é cruel, ele quer lucro, ele mata por dinheiro e ele carece de guerras e de gente ignorante, carece de escravos e de senhores que os explorem.

Viver, hoje, é tributado; e quem não pode pagar com dinheiro paga com a vida. É inaceitável! Quando somos capazes de negociar vidas, somos capazes de negociar princípios; e é assim que nos tornamos corruptos.

Devemos estar abertos às opções a este sistema assassino e continuar criando e acreditando em opções mais evoluídas.

Trata-se de boicotarmos a indústria da matança, de boicotarmos a indústria da escravidão humana e de nos insubordinarmos aos nossos poucos senhores!

Trata-se de darmos outro destino ao fruto de nossa força de trabalho e de acreditarmos no potencial transformador existente numa educação de qualidade!

Trata-se de nos libertarmos de dogmas, de quebrarmos paradigmas, de nos livrarmos de ideias ultrapassadas e não de pessoas! Trata-se de nos enxergarmos, a todos, como humanos imperfeitos e, como tal, cooperarmos em prol de nossa elevação ética e social!

Trata-se de depositarmos toda a nossa fé na certeza de que nossa libertação e a libertação dos animais que sofrem por nossas ações só dependem de nós!