.Por Guilherme Boneto.

Quando o tema em debate é a ampliação dos direitos das pessoas LGBT, os conservadores de costumes sempre argumentam que é preciso “pensar nas crianças”. Em sua desinformação ou desonestidade intelectual, acreditam ou pregam que qualquer expressão de sexualidade que não seja a heterossexual é “imoral”, e assim sendo, deve restringir-se a ambientes privados. Alguns querem, inclusive, que seja proibida pelo ordenamento jurídico. Um dos argumentos centrais para defender o indefensável: as crianças não podem conviver com isso.

Direi eu, neste precioso espaço, com o que as crianças não podem conviver. No entanto, embora concorde que é preciso refletir sobre o bem-estar infantil, apresentarei (ufa!) ponto de vista diferente.

Porque afinal de contas, sempre há uma criança escutando. Na escola, na mesa da cozinha, nos bancos da igreja, no churrasco de Natal. E é preciso que alguém pense nelas.

Em determinado momento da infância, a pessoa que futuramente será homossexual começa a perceber-se diferente dos demais. Quando se notam os primeiros sinais da sexualidade que irá aflorar, ela sente algo de incomum. É possível que o homossexual, embora nessa fase naturalmente não tenha ainda experimentado a sexualidade, já se perceba assim antes mesmo de entrar no período de adolescência, graças à própria personalidade e ao comportamento fora do padrão que pode vir a apresentar, e que os outros, naturalmente, percebem e apontam.

Essa criança irá à igreja, ouvirá discursos na televisão, conversas em família. Ela escutará, atenta, as palavras daqueles que tem como referência e que dizem amá-la incondicionalmente. Essas pessoas, em sua ignorância ou munidas de um propósito – às vezes financeiro – dir-lhe-ão que toda e qualquer expressão de sexualidade diferente da heterossexual e “tradicional” é errada e deve ser evitada a todo custo. Haverá quem vá além e afirme, com todas as letras, ser “coisa do demônio”. E para essas palavras tão carregadas de ódio, sempre haverá uma criança a escutar.

O que me inspira a escrever este texto é um trecho do filme “Orações para Bobby”, uma tocante produção norte-americana baseada em história real, que aliás, eu recomendo fortemente que se assista. Mary Griffith, a mãe de Bobby Griffith, mostra-se incapaz de aceitar a homossexualidade do filho, e utiliza-se de todos os mecanismos disponíveis para alterá-la. Religiosa, ela reza para que Bobby deixe de ser gay – daí o nome da história.

Depois de assistir ao suicídio do próprio filho, a mulher, consumida pela culpa e pelo arrependimento, se torna uma renomada ativista pelos direitos LGBT. Meses após a morte de Bobby, ela discursa para uma plateia repleta de sacerdotes fiscais do costume alheio, e recorda justamente o que argumento aqui: “uma criança está ouvindo”.

Diante disso eu proponho que pratiquemos, caro leitor, um breve exercício de empatia. Imagine a si mesmo no início da sua adolescência, desenvolvendo o próprio intelecto, tendo de lidar com uma chuva de hormônios e vendo a si próprio como “diferente” da maioria das outras pessoas por alguma razão que você ainda não compreende totalmente.

Pense na carga emocional de ouvir alguém a quem você ama afirmar que essa “diferença” que você sente avizinhar-se com tanta força é obra de demônios, ao mesmo tempo em que as outras pessoas começam a notar que você não é como elas, especialmente as outras crianças da escola, que muitas vezes julgam e excluem, sem que o corpo discente nem sempre seja capaz de lidar com a homofobia dos alunos, por despreparo e desinformação.

Cabe ressaltar que a homofobia é um preconceito diferente dos demais – tem uma forma diferente de crueldade porque conta com o silêncio do oprimido. Na maioria dos casos, a criança homossexual não pode simplesmente chegar em casa e dizer aos pais que um colega de classe o chamou de “viadinho”, porque esta mesma criança já ouviu dos pais, da professora, do sacerdote ou do tio que ele não pode ser “aquilo”, que seria uma imoralidade, uma aberração, uma indecência.

A mãe da criança homossexual provavelmente não baterá à porta da escola às 7 da manhã no dia seguinte para defender o filho da maneira que for necessária. Ela sentirá vergonha, muita vergonha, até compreender.

Imagine-se na pele dessa criança, sozinha, diferente, a ouvir e internalizar toda essa crueldade.

O exemplo de Bobby Griffith, que como já dito foi um jovem real, lamentavelmente não é isolado. Estudo realizado pela Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, estabeleceu uma relação direta entre a orientação sexual e a probabilidade de fazer esse tipo de mal a si mesmo. Concluiu-se que, entre homossexuais, a probabilidade de suicídio é cinco vezes maior do que entre jovens heterossexuais.

Naturalmente que nem todos os adolescentes gays chegam às vias de cometer suicídio – ainda bem. No entanto, muitos escondem a própria sexualidade, o que pode ser frustrante e perigoso. Essa repressão interna leva muitas pessoas LGBT a levar uma vida dissimulada e infeliz.

Por vezes, a falta de autoaceitação é canalizada com violência contra pessoas que conseguem viver bem com a própria sexualidade. Lembremo-nos dos relatos a respeito do massacre na boate Pulse, em Orlando, ocorrido em junho de 2016 – há relatos de que o atirador frequentava o local e se relacionava com outros homens, mas não aceitava a própria homossexualidade.

Então, meu caro leitor, os fiscais do costume alheio têm toda razão: é necessário pensar nas crianças. Há “personalidades” brasileiras a faturar enormidades em dinheiro porque mentem sobre a sexualidade humana, relacionando-a a princípios religiosos. Com essa desonestidade intelectual, não há diálogo possível. No entanto, boa parte da nossa população é simplesmente muito mal informada a respeito do assunto, das várias formas de sexualidade constatadas pela ciência, do fato de que ninguém escolhe a própria sexualidade, que desejo sexual é um instinto.

É necessário dialogar, dialogar, dialogar. Especialmente, é preciso informar e vencer essa onda reacionária da mais absoluta ignorância, esclarecendo e mostrando a verdade dos fatos. Somente o conhecimento é capaz de mudar esse cenário tão desolador. A luta parece dura, mas faz-se necessária quando pensamos nas crianças a receber todo esse impacto negativo – é imprescindível que alguém as tenha em mente. Pense nas crianças, você que me lê neste dia. Como bem disse Mary Griffith, “uma criança está ouvindo”.

Veja abaixou ou neste link, a versão dublada do filme “Orações para Bobby”.