Por Guilherme Boneto

Faz frio. Me deito, ligo a TV e acesso a Netflix para escolher um filme e passar diante dele o resto da minha noite de quinta-feira. À minha frente, a imensidão do catálogo se resume à chamada onipresente de Okja, uma produção que já me despertara a curiosidade havia alguns dias.

Não posso assistir filmes sobre sofrimento animal em hipótese alguma, não importa qual seja o bicho nem se, como é o caso de Okja, este seja criado por magníficos efeitos de computação gráfica. Devo dizer que ponderei essa lembrança antes de dar o play. Com o claro sentimento de que iria me arrepender de forma terrivelmente amarga, comecei a assistir à aclamada produção da Netflix.

Okja é uma porca gigante criada por uma empresa norte-americana e enviada, ainda filhote, às montanhas da Coreia do Sul para ser criada numa fazenda. Ela se torna o bicho de estimação de Mikha, a jovem neta do fazendeiro, retratando o velho clichê de criança e animal que permeia tantas produções cinematográficas. Após dez anos de amizade entre as duas, contudo, representantes da empresa vão à fazenda buscar Okja para levá-la de volta a Nova York, onde ela será exposta e, posteriormente, abatida para a produção de carne. O filme, cujo enredo pode ser classificado como previsível, se resume à tentativa heroica da jovem de salvar a sua porca de estimação.

Não quero me aventurar a fazer uma crítica de cinema – não me vejo como alguém gabaritado nesse sentido, e esta não é a minha intenção aqui. Contudo, o filme me deixou, em falta de melhor palavra, perturbado – e lembre-se que, no segundo parágrafo deste texto, eu disse que sabia que iria me arrepender de assisti-lo. Há cenas na produção extremamente indigestas àqueles que, como eu, são apaixonados pelos animais. Até hoje, não reuni a necessária coragem para assistir a produções aclamadas do cinema lançadas há vários anos, como Marley & Eu e Sempre ao seu Lado, porque conheço bem os efeitos que filmes como esses causariam em mim.

Okja, por sua vez, é um animal adorável, meigo e fiel, e ao longo do filme, há muito foco na inocência de seus olhos. A despeito de seu tamanho, ela é absolutamente indefesa aos maus-tratos aos quais é submetida, tanto quanto a garota que tenta de todas as maneiras levá-la de volta para casa. A minha perturbação vem de um fato: essa tortura acontece o tempo todo, todos os dias, no mundo inteiro. Está acontecendo agora. E nós não queremos pensar nisso. Ainda que pensemos e venhamos a agir, não dispomos de uma legislação efetiva para proteger os animais e dar-lhes a dignidade que, tanto quanto nós, eles merecem.

É preciso também refletir sobre o mercado da carne e a forma como os animais de abate são tratados ao longo da vida. O abate será sempre cruel, é verdade, porque se trata de morte. No entanto, os bichos são submetidos a uma vida infeliz, confinados em espaços minúsculos, torturados e maltratados. Unida à sede de lucros financeiros a qualquer custo, a crueldade humana não encontra limites.

Existe hoje um movimento forte a conclamar as pessoas a uma dieta vegetariana ou vegana. Desconheço as vantagens e desvantagens nutricionais de parar de consumir produtos de origem animal, no entanto, respeito e reverencio as pessoas que abdicam da carne em suas refeições. Não é fácil, em especial porque existe muito preconceito contra quem o faz. Sou incapaz de compreender a chacota contra pessoas cujo sentimento de abnegação é suficiente para abrir mão de certas formas de comida e de todos os ritos sociais que vêm com elas. A meu ver, isso é absolutamente admirável.

Okja nos faz refletir sobre tudo isso – e é capaz de tocar o coração de forma mais profunda do que seria desejável. Pode ser um filme perturbador, mas eu garanto: vale a pena. Ao assistir, dedique-se às reflexões propostas pela produção. Lágrimas à parte, é uma história de amor, amizade, coragem e companheirismo, que merece ser vista por todos os que amamos e respeitamos os bichos em suas maravilhosas particularidades. Todos os animais merecem, afinal, respeito e dignidade absolutos, e uma vida feliz e plena. É nossa obrigação moral assegurar-lhes isso, uma vez que suas mazelas, visíveis aos que se atentam, são nossa culpa.