Por João Neves

Torna-se, a cada dia, mais difícil sustentar as premissas da democracia representativa pactuada durante a conturbada década de 1980. A descrença volta a imperar entre a população, rancores e ódios pululam em cada esquina – talvez esses sentimentos sempre estiveram ali, mas hoje, como em tantos outros momentos da história, dobraram a curva e ganharam as ruas. Este cenário pode, no entanto, nos levar a um abismo fascistizante como também pode oportunizar o crescimento de uma relva com novas relações, talvez mais libertárias. Isso dependerá, obviamente, das vontades potencializadas pelo suor que os ressentidos transpiraram. Vejo, portanto, ao contrário de alguns interpretes, esse contexto com certa euforia. Afinal, entre as pulsões ressentidas, abre-se espaço para novas subjetividades (a morte, destemida frente a raiva, ronda essas emoções).

Dito isso, procuro entre as notações melódicas entoadas nos últimos anos alguns estímulos para contaminar nossa transpiração. A primeira incitação chegou no dia anterior a uma das principais ações populares ocorridas no ano de 2017 (greve geral organizada na emblemática sexta-feira, 28 de Abril). Refiro-me ao disco “Espiral de Ilusão” do cancionista Criolo, lançado nas plataforma “livres” da web no dia 27 de Abril – emblemas que a historiografia, preocupada com a música popular brasileira, terá que enfrentar em um futuro próximo.

A obra é revestida por uma capa que nos remete aos tempos da arte modernistas, em que corpo humano, formas geométricas e colorações simples compunham uma narrativa sobre as tensões da modernidade. A partir dessa imagem que entramos nas reflexões Criolianas, as quais, como afirma o músico, são composições que vieram – “No meio de 2016, [momento em que] muito sentimento, muita emoção, muita coisa desaguou”¹. Sobre o ritmo que embalou a poesia, ele conta que “não veio em Rap, não veio em Raggae, nem em Bolero. Veio em Samba”, de gafieira, de roda, de raiz, de partido-alto, canção e de breque. As batidas do morro, das margens, dos terreiros, e os cantos dos rincões marginalizados harmonizaram os sentimentos de Criolo.

“Acho que você não me entendeu

Meus meninos são o que você teceu

Em resistência ao mundo que Deus deu

Então pare de correr na esteira e vá correr na rua

Veja a beleza da vida no ventre da mulher

Pois quem não vive em verdade, meu bem, flutua

Nas ilusões da mente de um louco qualquer

E eu não aceito, não

Eu não quero viver assim, mastigar desilusão

Este abismo social requer atenção

Foco, força e fé, já falou meu irmão

Meninos mimados não podem reger a nação”

(Menino Mimado, Faixa 3)

Confesso que precisarei ouvir essa canção outras tantas vezes para compreender os pormenores que engendram a performance. De imediato, no lançar dos olhos, um rápido filme se reprisa: Governos petistas, desestruturação da ordem, manifestações populares, golpe, Estado de exceção, as pelejas dos movimentos da história presente. Repito: “Meninos mimados não podem reger a nação”.

A segunda incitação talvez ainda tenha mais dificuldades para interpretá-la, pois suas formulações estão carregas de misteriosas encantações (veja abaixo). O teto estava decorado com bandeirinhas e bandeirolas coloridas, balões, traçados e tranças das folias juninas. A festança era grande, haja vista que faziam mais de nove anos que Renata Rosa não cruzava as medonhas “terras dos barões do café”.

Nessa rápida passagem, durante a terceira noite do inverno, a moça nos trouxe acalento. Acompanhavam-na músicos que profanavam sonoridades no tambor, na rabeca, na bandola, no ilú, na alfaia e no carcabous, instrumentos nos quais se encontravam com os toques do Triângulo, do gonguê e do caxixi. Ritmados por esse casamento, violão, viola de sete e de dez cordas dedilhavam as lamurias dos sertões, enquanto o trombone e a trompa sopravam aflições. Nesse ritual todos dançaram e aprenderam a cantar ciranda. Corpos se mexiam em comunhão, mãos entrelaçadas…

“Cantar ciranda é o que eu me dediquei

Mas eu pensei que não tinha resultado

Cantar ciranda é o que eu me dediquei

Mas eu pensei que não tinha resultado

Fiquei parado, bati a porta e pensei

Como cirandeira, eu sei

Ir a curva do encantado

Fiquei parado, bati a porta e pensei

Como cirandeira, eu sei

Cantar para os apaixonados”

(Cantar ciranda, Faixa 7)

Em um determinado momento do espetáculo desatei minha mãos e fui andar pelo espaço. Queria sentir a energia circulando. Me interessava ver as formas que tal ritual gerava e como nossos corpos respondiam aqueles (im)pulsos. Notei, enquanto caminhava entre xs muitxs, que eramos mais de 1 mil e formávamos um corpo coletivo. Se tivesse a oportunidade de fotografar do alto o que se ocorria na terra – pensei comigo, estimulado por flores – teríamos a imagem de um célula.

[Acho que ainda lembro algo de Biologia]. A ciranda do centro seria o núcleo, enquanto as rodas menores poderíamos considerá-las como os lisossomos ou as mitocôndrias. Os casais enamorados considero os centríolos e os dispersos – como eu – ribossomos. Juntos pulsávamos desejos de coletivização. Que assim, seja…

João Augusto Neves Pires é historiador e membro do grupo de Pesquisa em Música Popular: História, Produção e Linguagem da Unicamp e do Coletivo de Mídia Livre Vai Jão.