Por João Neves

Primeiro pulso

Uma pergunta instigante é entoada enquanto soa um beat grave, o qual marca sua presença ritmando o pulso do coração. A poesia nos lança à parede, nos questiona se talvez não tardamos para compreender “como bate o coração de uma mulher”. Nossas arrogâncias silenciaram as batidas, as quais poderiam ser ouvidas caso tivéssemos a sensibilidade de sentir “um pássaro entre as mãos”. Posta a questão, o agogô chama a guitarra que nos acompanhará pelo caminho da (des)construção.

Enquanto Caçapa preenche o ambiente com seu dedilhado, Alessandra Leão, novamente, lança a questão: “Para entender como bate o coração de uma mulher, é preciso ter sentido, algum dia na vida, o pássaro preso entre as mãos.” E a pergunta é retomada, ela se repete e vamos subjetivando a provocação. Buscamos, na memória, no poço de nossas reminiscências, quando sentimos pássaros entre as mãos.

O fraseado da guitarra, o pulso do baixo e o ressoar do chimbau nos leva para o cerne da questão. Temos um breve silêncio da cantora. Feito o respiro, o agogô traz a voz de Alessandra, a qual repete o choque: “para entender como bate o coração de uma mulher, é preciso ter sentido, algum dia na vida, o pássaro preso entre as mãos.” Voltamos ao prenuncio.

A sugestão, ou o caminho que se pode trilhar em busca da resposta, nos é lançado: “Na primeira vez que eu te beijei você sentiu a terra girar na minha mão. Como o meu primeiro trafego. É preciso ter cuidado com pássaros, mulheres e peixes.”A frase final leva minha memória a outra canção. Peixes, de Mariana Aydar. Sinto mais um calafrio, afinal, somos, seguindo a poesia,

Peixes, pássaros, pessoas

Nos aquários, nas gaiolas,

Pelas salas e sacadas

Afogados no destino

De morrer como decoração das casas

Duas mulheres engajadas – cantam e afinam melodias com seus parceiros – a dizerem algo frente as posturas misóginas que irrompem entre nossos relacionamentos. A solidão e o vazio social, nos faz matar pássaros, peixes e pessoas. As mulheres, principalmente. Enquanto escrevia, pelo menos algumas centenas foram violentadas.

Voltemos as canções.

Alessandra Leão, ao contrário de minhas suspeitas da parceria com Mariana Aydar, canta, no disco Língua, com Ná Ozetti a música “Pássaros, mulheres e peixes”. A composição, apesar da citação e aproximação com questões da canção “Peixes”, registrada no disco “Peixes, Pássaros, Pessoas” (2009) de Mariana, floresce a partir do texto “Como bate o coração de uma mulher”, escrito por Xico Sá em sua coluna no jornal Folha de São Paulo. Parte da inquietante provocação de Sá, coloca que:

“Não há escola, livro bom ou picaretagem de auto-ajuda. Ou se convive loucamente ou nunca vai saber o que seja uma mulher na vida. Mesmo convivendo loucamente, sabe-se pouco ainda. Eis o mistério do planeta, baby.”

O autor, confiante de que morrerá sem resposta, não deixa de se inquietar. Coloca questões a si mesmo e repensa sua postura no mundo. Alessandra e Caçapa, tomam emprestado a formula e emprega sonoridades aos questionamentos do autor. Tanto a canção, quanto o texto, não nos dá, apesar das metáforas, respostas, tampouco nos apresenta uma formula mágica. E, fiquem atentos, pois

“Elas vão notar, de cara, quando se trata apenas de um donzelo a decifrá-las, um cabaço, mas tá valendo, bom é que seja homem e tente.

Vem, meu menino vadio…

É mais fácil enganar a Deus e a Darwin juntos do que enganar uma fêmea.”

Segundo pulso

Estávamos em meados de Março quando Samira me ligou para convidar a uma apresentação de circo e teatro com um grupo de mexicanos no Casarão. Iríamos assistir o Cabaret Caricho. Aprontei-me, convidei outro amigo e esperei sua carona. – Acho que vocês conhecem o espaço do Centro Cultural Casarão! Pois então, na chegada fomos recebidos por duas meninas jovens que brincavam, atrás de um pano de chita, com seus instrumentos, seus brinquedos e suas imaginações. Cantamos e sorrimos um bocado de tempo por ali.

Eramos convidados por essas simpáticas moças a entrar no salão de apresentações do Casarão – o ambiente circenses logo era notado. Ingressávamo-nos no picadeiro.

Não consigo, com palavras, descrever as imagens que nos envolviam. No entanto, para que o leitor possa sentir, minimamente que seja, algumas sensações do espectador na época, pedi emprestado o olhar sensível do fotógrafo Dalton Ou Chum. (http://chun.46graus.com/) ou (https://www.instagram.com/chun_fotografia/)

Dentre as apresentações da noite, uma em especial vale a pena ser contada.

A atriz sai da coxia dançando e cantando. Ela segura uma garrafa de tequila, sorrindo, oferece para a plateia. Todos querem um gole de “aguardiente”, no entanto apenas os homens sentiram o gosto daquela bebida. Entre o público a atriz entregava o copo com tequila para homens, os quais, após beberem o mágico líquido, recebiam um beijo no pescoço, outros um cheiro, as vezes um carinho. Sentado no alto das escadarias, um ansioso rapaz foi convidado a beber a poção. Ao tentar a agarrar o vasilhame a atriz lhe sugere o palco. Ele seria obrigado a beber todo o conteúdo diante do público, frente as luzes dos holofotes. Bem, eu fui até o palco.

Após entregar-me a bebida, a atriz sorrira docemente para mim. Eu estava envergonhado, a ansiedade aumentara e o entusiasmo se misturava com medo e incertezas. “O que está acontecendo?” – pensava enquanto ela cantava uma canção de amor. Sentada enfrente a um piano elétrico – os elementos da cena eram um piano e uma cadeira – ela se declamava. Estático, sem saber para onde correr, esperava cada reação da atriz. Era um jogo e eu não sabia as regras. Ao final de cada canção, me era colocado um objeto. Primeiro um relógio, depois uma gravata, ao final dinheiro e uma bexiga em formato de coração. Estava com as indumentárias do homem médio – de família, de negócios, branco na maioria das vezes. Aquela mulher se declamava para mim e eu sorria (cada vez mais envergonhado, pois, vestido, “a fixa já tinha caído” – nessa hora pensei: preciso escrever sobre isso algum dia. Cá estou eu!).

Assumido o personagem daquele que jamais sentiria o “coração de uma mulher”, a atriz me faz sentar na cadeira. Coloca a bexiga vermelha com formato de coração em meu colo e senta de modo que a bexiga estoure. A plateia já havia entendido ou, ao menos, sentido o coração. Ela me levanta da cadeira e me manda para fora do espetáculo.

Aquela noite senti o coração, queria chorar. Quantas vezes em minha vida me portei como homem médio? Branco, misógino e machista?

Terceiro pulso

Primeiro uma canção, depois um espetáculo teatral e por último um filme.

O apartamento (2017)
Direção: Asghar Farhadi
Elenco: Shahab Hosseini, Taraneh Alidoosti, Babak Karimi
Gênero Drama
Nacionalidades Irã, França

Ainda precisarei de muitos fôlegos para entender como bate o coração de uma mulher.

http://filmescult.com.br/o-apartamento-2016/

João Augusto Neves Pires é historiador e membro do grupo de Pesquisa em Música Popular: História, Produção e Linguagem da Unicamp e e do Coletivo de Mídia Livre Vai Jão.