Por Guilherme Boneto

Daniel Zamudio foi um jovem chileno, assassinado em março de 2012 por um grupo de quatro neonazistas. Ele tinha 24 anos. Morreu por ser homossexual. O rapaz foi encontrado ainda vivo num parque em Santiago, a capital do país, mas morreu no hospital após vários dias de agonia.

O crime contra Daniel Zamudio resultou em uma lei anti-homofobia no Chile. À época, presidia o país o conservador Sebástian Piñera, que declarou ao sancionar a legislação: “graças ao sacrifício de Daniel, hoje temos uma nova lei que, estou certo, vai nos permitir enfrentar, prevenir e punir as discriminações arbitrárias que causam tanta dor”. Os monstros que assassinaram o jovem marcaram seu corpo com suásticas, o símbolo nazista. Queimaram sua pele com cigarros acesos. Cortaram sua orelha. Quebraram-lhe as pernas a pedradas.

Naquele dia, todos nós morremos um pouco. Porque Daniel Zamudio era um de nós. A morte de seu corpo físico foi, afinal, o assassinato de uma pequena parte de nossas almas.

Assim também o foi com Dandara dos Santos, uma mulher brasileira de 42 anos, morta a pancadas por outro grupelho de brucutus, em falta de melhor adjetivo. Palavras não são suficientes para expressar a minha revolta. Ela foi assassinada porque era transexual. Corre pela internet um vídeo, filmado por um dos criminosos, retratando toda a sequência das agressões. Eu não assisti ao filme porque não suportaria o impacto das imagens. Não conheci Dandara, mas mesmo assim não suporto perdê-la, não sou capaz de vê-la apanhar sabendo que eu estava fazendo qualquer outra coisa naquele momento além de ajudá-la, além de pedir, de implorar, que aquelas pessoas parassem de bater nela.

Dandara também era uma de nós. Seu sangue é o nosso sangue. Sua humilhação é a nossa humilhação.

Ela tinha mãe e irmã. Ambas deram entrevista à TV Globo, republicada pelo portal G1. Ter mãe e ter irmã é um ponto importante a se ressaltar quando se trata de uma mulher transexual, porque o Brasil desumaniza suas travestis desde sempre. O desespero de Dona Francisca Ferreira vai contra essa forma de ver o mundo. A irmã relatou ainda que Dandara já havia sido alvo de agressões anteriormente, e a descreveu como uma pessoa doce e prestativa.

O assassinato de Daniel Zamudio, embora brutal e chocante, não foi em vão. Seus assassinos foram condenados à prisão perpétua. O crime chocou tanto a sociedade chilena que a lei anti-homofobia tornou-se a Lei Zamudio. Seu funeral foi acompanhado por centenas de pessoas; tornou-se um ato de homenagem e protesto.

O jovem morreu, mas sua morte salvou e salvará centenas de outros chilenos. Com Dandara, nada disso ocorrerá. Seus agressores serão punidos no característico rigor da lei brasileira, e podemos assinalar a sorte por terem encontrado as pessoas que a mataram, porque tiveram a crueldade de gravar um vídeo. Mas ela era uma de nós. E justamente por isso, é só mais uma. Seu crime foi ser diferente dos demais. Uma pessoa assassinada a pancadas por motivo fútil é um evento corriqueiro que já não choca o Brasil. Não sei se um dia chocou. Quero crer que sim.

Vi sites de notícias e páginas de outros países noticiando a brutalidade da morte de Dandara. Pedem punição. Mas essas pessoas não sabem como a sociedade brasileira funciona, não sabem que muitas pessoas Brasil afora acharam ótimos o assassinato e a forma como se deu a execução, e outras tantas torcem para que Dandara não seja a única, e ela não será. Houve ainda os que acharam graça nas filmagens horrendas. Eles são milhões, e Dandara era só mais uma, uma de nós. Que defesa temos?

Deve-se destacar o empenho das autoridades cearenses em solucionar o crime. “Precisamos de mais educação e orientação às pessoas, que aprendam a respeitar o próximo. A intolerância só gera consequências ruins”, afirmou com toda a razão o secretário de Segurança e Defesa Social do Ceará, André Costa. O governador Camilo Santana declarou à imprensa que “Não aceitaremos qualquer tipo de violência contra a vida de ninguém. [Os suspeitos] já estão com ordem de prisão. Foram identificados e serão punidos rigorosamente. Vamos punir exemplarmente”. Já o prefeito de Fortaleza, Roberto Cláudio, disse que ordenou “à nossa Coordenadoria para buscar a família, conhecidos da Dandara e ofertar todos os apoios de advocacia, do direito a defesa à família”. Mais detalhes podem ser lidos nesta reportagem do jornal O Povo.

Têm pouca eficácia, porém, as palavras. Não temos estrutura para punir discursos de ódio, e nem tampouco fazemos nada para preveni-los. Somos cercados pela absoluta ignorância de todos os lados. O Chile, menor que a região metropolitana de São Paulo, coibiu e puniu a homofobia. Argumenta-se que se trata de um país pequeno, absoluta verdade. A meu ver, no entanto, o que muda tudo é a atitude.

A diferença dos nossos crimes homofóbicos, mais de 300 ao ano, é que são todos, absolutamente todos em vão. O túmulo de Daniel Zamudio virou santuário; o de Dandara, talvez seja apedrejado. O Estado brasileiro não tem sequer a deferência de contabilizar os assassinatos por homofobia, e isso independe de partidos políticos. A verdade é que o nosso sangue escorre pelas ruas e calçadas deste país, bem como o sangue das mulheres, dos negros, dos indígenas, e sua putrefação já não agride o olfato de ninguém. Estamos acostumados à barbárie.

Gostaria de dedicar este artigo a Dandara dos Santos. O jornal O Povo dedicou a ela um breve e emocionante perfil. Ela tinha o sonho de abrir um salão de beleza e comprar um carro. Também gostava de dançar. Eu, como brasileiro, posso apenas assegurar que ela não será esquecida, embora sua morte não vá impactar a sociedade e nem tampouco as instituições deste país. Nossa ética, nossos princípios, nossos valores, está tudo falido, tudo se corrompeu. Para eles, Dandara era só mais uma. Será eternizada, no entanto, porque era uma de nós, e em nossas bocas e mentes, não se tornará estatística.