Ódio à classe média, “pobrismo” e empreendedorismo

Por David Carneiro

Em seu clássico
A economia do socialismo possível
, Alec Nove relembra-nos um conto de Vasili Grossman no qual o escritor ucraniano coloca as seguintes palavras na boca de um soldado soviético: “desde pequeno, sonho em abrir uma lojinha. Assim as pessoas poderiam entrar e comprar. Ao lado dela, haveria uma lanchonete, onde os clientes pudessem comer carne assada e tomar um bom drink se assim quisessem. Tudo isso por um bom preço…se eu falasse isso em voz alta, no entanto, seria mandado direto para a Sibéria. E mesmo assim, eu lhe pergunto: que mal estaria fazendo a essas pessoas?”

Hoje os males de uma economia planificada e as irracionalidades e efeitos políticos colaterais que lhes são correlatos são de amplo conhecimento e já não angariam simpatias, ao menos expressas, na maior parte da esquerda e dos setores progressistas.

Não obstante, o ódio ou a desconfiança em relação ao empreendedorismo persistem e são reatualizados pelo imaginário coletivista e pela herança teológica que a esquerda decidiu chamar de sua.

Ao mesmo tempo em que se orgulha de ter implementado políticas, em parte, de fato responsáveis pela emergência de uma “nova classe média”, que nós chamamos aqui de “batalhadores”, a esquerda manteve, no nível de sua estética e representações, uma imensa má vontade em relação aos valores dessa classe emergente, fechando as portas para uma aproximação programática e para a própria inteligibilidade de seu discurso.

O primeiro elemento desse fechamento e talvez o mais tosco consiste no conclamado ódio nutrido pela entidade abstrata que se convencionou chamar de “classe média”. Não há uma única pesquisa que mostre que a classe média brasileira possua posições políticas mais retrógradas que “os pobres” e nem que haja, nos estratos de renda média, uma única posição política consolidada. Apesar, é claro, de um avanço conservador, nos últimos anos, poder ser verificado em todas as classes e estratos sociais.

Apontar esse fato não significa negar a existência de posições retrógradas em um nível alarmante, nem negar a vocação colonial das elites brasileiras, mas sublinhar os riscos que a reificação de uma imagem de classe traz ao cultivo de um imaginário progressista.

Pode-se dizer que um dos erros contido nesse “ódio” é que a condição de classe média, compreendida como um mínimo de conforto material e segurança familiar, é aspiração quase que universal e legítima nos dias atuais, à qual muitos almejam alcançar e da qual muitos lutam para não sair.

Ao cultivar esse ódio irracional, a esquerda parece esnobar boa parte das lutas cotidianas das pessoas comuns do País, seja para fechar as contas no final do mês, seja para garantir o sustento dos filhos. Quando não, para fugir ou remediar a dolorosa realidade atual do desemprego.

O reverso do ódio à classe média tem se materializado em outro erro, que chamamos de cultivo da estética do “pobrismo”. Uma vez indisponível a figura do operário modelo, o pobre, o flagelado ou, de modo mais idílico, os povos tradicionais, transformaram-se em horizonte estético da esquerda, operando um fechamento para os horizontes de vida possíveis e um afastamento de aspirações legítimas das maiorias desorganizadas do País.

Se por um lado sonhar com um eletrodoméstico soa quase como uma traição de classe, um atestado de ser “manipulado” ou mesmo exemplo do “erro” da estratégia de inclusão pelo consumo, o pobre só “prestaria” para esquerda quando assumisse com orgulho sua condição de destituído, isto é, sem os vícios típicos dos “pequenos burgueses” e seus sonhos de ascensão material.

Isso, é lógico, quando muitos dos intelectuais de esquerda já têm acesso aos mesmos bens desejados pelos batalhadores.

Quando se cruzam no mundo produtivo, o ódio à classe média e o pobrismo transformam-se em negacionismo das experiências de empreendedorismo dos batalhadores. O sonho com o negócio, a busca de autoajuda e mesmo redes cooperativas ligadas à religião são reduzidos a “dispositivos funcionais de controle” ou captura pela “ideologia capitalista”.

Batalhadores são lembrados a todo o tempo que “não são um deles” ou que são simplesmente “massas de manobra” de empresários e pastores.

É preciso entender que se, como mostram algumas pesquisas, mais de 40% dos moradores de favelas sonham em ter seu próprio negócio, não o fazem somente por vocação (ou manipulação), mas também por necessidade. Nos dias que correm, o “empreender” é tanto a possibilidade que resta aberta para uma vida melhor quanto uma necessidade imediata de prover a si mesmo e a sua própria família diante da crise do assalariamento.

Disso não se segue, é claro, que os setores progressistas devam comprar totalmente o “discurso do empreendedorismo” ou a própria linguagem dos batalhadores tal como se apresenta. Uma das faces mais perversas da “ideologia do empreendedorismo” consiste na tentativa de culpar os pobres pela própria pobreza e ilidir os fatores estruturais das desigualdades e privações nas sociedades atuais. Não se pode, contudo, confundir o empreendedorismo com sua ideologia.

Em vez disso, o ideário da esquerda deveria compreender que há no mundo produtivo um processo aberto e em disputa, que exige de nós abertura a múltiplas fontes teóricas. Isto não significa capitular ao espírito do tempo, mas sim manter-se à altura da complexidade social que caracteriza o mundo atual. É preciso ver, por exemplo, na crise do assalariamento e o consequente “escape” pelo empreendedorismo, não uma capitulação, mas uma nova oportunidade de emancipação.

Isso nos leva, por consequência, à necessidade de cultivar alternativas não-estatistas, que poderíamos chamar de um “liberalismo popular” ou “experimentalismo democrático”. Abraçar essas alternativas não significa abandonar a aspiração emancipatória do socialismo dos séculos XIX e XX, mas revisitar seus próprios fundamentos.

Não esqueçamos que autores como Marx sempre tiveram o valor da autonomia individual como parte central de seus ideários políticos. O comunismo previa a conquista, por meio da luta social, daquilo que a sociedade de então não podia oferecer: a liberação do potencial de produtor autônomo de cada indivíduo.

O erro de Marx, é claro, foi não ter antevisto as consequências anti-democráticas da planificação, mas qualquer projeto que deseje revisitar os fundamentos de Marx sem incorrer em seus erros deve assumir que o caminho para uma sociedade de produtores autônomos precisa estar baseado em algum tipo de organização econômica que valorize a iniciativa e a autonomia individuais.

Um projeto desse tipo passa na maioria das vezes por fora do Estado, mas exige também outro modelo de Estado para que possa florescer.

Um novo projeto de esquerda deve combinar a energia autônoma dos pequenos negócios, cooperativas e empreendimentos com um novo desenho das instituições, que vá além da distribuição marginal da renda e do discurso da equidade que até agora marcaram, para o bem ou para o mal, a experiência da esquerda no poder.

Se por um lado um programa desse tipo baseia-se na democratização do acesso dos pequenos e médios empreendimentos ao crédito e a oportunidades de capacitação e escala que lhes são negados pelo neoliberalismo, por outro radicaliza o projeto da esquerda, recolocando a questão estrutural da reorganização da economia e das oportunidades no centro do debate político.

Ao invés de ignorar ou esnobar essa força que surge nas periferias brasileiras, a esquerda deveria valorizar a linguagem política que prioriza o sonho da autonomia individual, coletivamente construído e sustentado nas famílias e igrejas periféricas. Trata-se de terreno muito mais fértil do que aquele orientado por ideias coletivistas vagamente professadas, restritas a corporações e movimentos tradicionais.

Isso porque permite tanto que os setores progressistas mobilizem uma nova base para bandeiras históricas, como a democratização do crédito produtivo e a reorganização do sistema financeiro, mas também a abertura a novas formas de construção de prosperidade individual e coletiva.

A aliança entre e a esquerda e os batalhadores está longe de ser automática. O discurso destes hoje, não sem motivos, mistura uma profunda desconfiança na política com a crença de que o Estado deve prover infinitas demandas. Se a esquerda conseguirá se encontrar programaticamente com a energia dos batalhadores, é uma questão aberta.

Algo, no entanto, não parece estar em aberto. Ao manter o discurso do ódio à classe média, da estética do pobrismo e da nostalgia mal confessada da planificação, caminhamos para uma fragorosa derrota histórica. Contra a redução estética, defendemos que a esquerda precisa fazer sua opção preferencial pela riqueza. Não para cultivar a cultura do descarte, mas para promover o reencontro com as aspirações e possibilidades de prosperidade colocadas pelo nosso tempo. (Da Carta Capital)

*David Carneiro é doutorando em Filosofia do Direito pela UERJ. Foi pesquisador visitante da Harvard Law School e consultor legislativo. Roberto Dutra, doutor em sociologia pela Universidade Humboldt, é professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense