Sobre o Monumento às Bandeiras de Victor Brecheret e a Estátua do Borba Gato em São Paulo

Primeiro de Outubro de 2016

Por Marcelo Hilsdorf Marotta

A Estupidez vem sempre à galope….

reprod midia
Foto: reprod Ag. Estado

No Império Romano, a Damnatio Memoriae era a prática de adulterar ou destruir parte ou integralmente monumentos que trouxessem imagens ou inscrições comemorativas de imperadores mortos. Ao mesmo tempo em que se destruíam esses monumentos que visavam glorificar regimes passados e suas práticas, se glorificavam aqueles do presente. Compreendeu mal a arte, a dinâmica própria da história da arte e a natureza do patrimônio histórico, artístico e cultural aqueles que trazem a essa discussão do legado do Monumento aos Bandeirantes de Victor Brecheret em São Paulo a ideia de que é estratégia burguesa sacralizar o objeto da arte, cuja implicação lógica é que todo monumento é um potencial candidato a ser implodido, já que encarnaria com essa sacralização toda sorte de opressões e desigualdades típicas do ser burguês. Como sempre, nesses casos, a Estupidez costuma vir à galope. Primeiro porque no exato instante em que alguém dessacraliza algo, esse mesmo alguém eleva ao pódio outros objetos como mais dignos do que aquele e, portanto, trata-se sempre e necessariamente de substituir uma idolatria supostamente “falsa” com uma supostamente “mais verdadeira”. O próprio gesto de dessacralizar, não se esqueçam, é comumente sacralizado na arte contemporânea e ai de quem  questioná-lo: tolices que fazem bem o gosto justamente do sistema burguês da arte, onde se controla quem pode e quem não pode na Arte.

É parte intrínseca da História da Arte essa dialética complexa que submete, no futuro, as ações e obras artísticas do presente aos próprios critérios artísticos sob os quais essas mesmas ações foram um dia realizadas, de forma que o que o historiador observa, na longa duração, são obras e ações que são com o tempo muitas vezes questionadas pelos pressupostos que as erigiram. Em segundo lugar, é importante que não se perca de vista a natureza diacrônica de todo discurso de ordem sincrônico: a burguesia tem uma inscrição histórica particular, um lugar e um tempo, isto é, não se trata, como certas Histórias da Arte a la Arnold Hauser tentaram considerar, de modo simplista e redutor (e que infelizmente costuma ser a única porta de entrada à História da Arte que muitos têm aqui no Brasil ainda hoje), uma categoria meta-histórica, universal, cujas origens se perderiam in illo tempore. A história, já ensinava Heródoto, é feita do particular.

Por isso, ninguém pensa em entrar numa igreja e arrancar os crucifixos, símbolos de uma prática cruel do passado. E o Coliseu e seus combates sangrentos, vamos pôr abaixo? Tem também o Arco do Triunfo do Imperador Napoleão, que tentou anexar a Europa para si à força, sabem aquele que fica na mais famosa avenida de Paris, a Avenue des Champs Élysées? Quando você visita um sítio arqueológico, tipo Angkor Wat no Camboja, ninguém pensa que estão ali representados nos incontáveis baixos-relevos e estátuas cenas sangrentas entre as divindades, e que o rei Suryavarman II do império Khmer, que mandou erigir esse que é o maior monumento religioso do mundo, estava ali com isso comemorando e legitimando através dessas narrativas sagradas suas inúmeras campanhas militares que certamente destruiram muita coisa e mataram muita gente? Quantos sítios arqueológicos pelo mundo afora contêm narrativas semelhantes, e as pessoas que têm algum senso de civilidade nem por isso pensaram em implodi-los? Vejam o caso do Parthenon em Atenas, por que não parar com essa “palhaçada” de especialistas que estão tentando promover há décadas a reconstrução do templo e completar o trabalho do passado que danificou o edifício com mais pólvora e munições, se ele é o símbolo máximo do Imperialismo Ateniense? Quando vimos o ISIS destruir tantos monumentos no Iraque, na Síria, etc, como em Palmira, você aplaudiu ou protestou contra essa ação? Se protestou, exatamente o que você achava que estava tentando conservar?

Auschwitz, já ouviram falar? Sabem que todo o campo de concentração mais famoso da história foi mantido intacto para as futuras gerações? Você pode visitá-lo na sua próxima ida à Europa, e terá uma experiência e tanto que poderá guiá-lo no futuro no combate ao Fascismo. Eu nunca pude visitar a Alemanha até hoje, mas sei que em Berlim há muitas partes do Muro que foram também conservadas exatamente no meio da cidade, onde foram erigidas originalmente. Lastimo muito a retirada das inúmeras estátuas e obras dos antigos regimes dito comunistas no Leste Europeu, não porque eu aprove toda prática desses regimes, mas porque em duas ou três gerações as pessoas nesses países já não se lembrarão do que ocorreu no passado.

Como Arqueólogo e Historiador da Arte, acho patético como a maior parte das pessoas que ostentam alguma posição intelectual, aí incluídas algumas celebridades do meio acadêmico, muitas das quais têm lutado ostensivamente contra a prática do linchamento e da censura, são tão rápidas na proclamação da mesma censura e da destruição do patrimônio, esse mesmo patrimônio que serve ou deveria servir a esses mesmos intelectuais como fontes ou documentos sobre o passado. Podemos e devemos cada vez mais debater o significado dos monumentos, trazendo para fora das academias a discussão e o aprendizado sobre como ler o mundo que nos cerca, aí incluídas as imagens, obras de arte e monumentos públicos. O que não é aceitável nesse debate é ver tantas pessoas com diplomas em humanidades, como Historiadores, Cientistas Sociais, etc, propondo a destruição daquilo que é a condição de possibilidade desses mesmos ofícios intelectuais e é condição de possibilidade da sanidade coletiva. Talvez por conta da vida virtual ter se impregnado por toda parte, estamos com isso esquecendo a importância e o significado da memória coletiva? Quando a memória não lembra mais, porque apagou atrás de si todos os vestígios, o que acontece com a sociedade? Quem é e qual o futuro dessa sociedade que não sabe mais de si mesma? Vamos apagar o passado, é isso que as pessoas estão propondo do alto de suas consciências políticas e intelectuais?

Reescrever a história é justo e legítimo, mas apagar os vestígios do passado não, porque impedem que no futuro essa mesma história volte a ser reescrita. Que tal se todos nós fôssemos mais humildes e considerássemos que a nossa própria perspectiva histórica hoje não é absoluta e que ela pode ser reescrita no futuro por historiadores que ainda nem nasceram? O que aconteceria com essa história escrita no futuro se todos os indícios da barbárie e do genocídio do passado fossem apagados? Esse apagamento não é justamente o que fazem as Ditaduras e as sociedades totalitárias, porque conservar apenas uma parte da história e eliminar todo o contraditório não é condição de possibilidade da sua sobrevivência como sociedade totalitária, profundamente injusta e desigual?

Que tal se a gente se contentasse, para honrar nossos diplomas nas Humanidades, em reescrever a história apenas nos livros e com uma ação política no presente que dissesse respeito às decisões que cabem ao presente, ao, por exemplo, decidirmos quais as novas estátuas e monumentos que gostaríamos de erguer, ao invés de apagar o passado de acordo com os critérios dessa história que é sempre, lembram-se, particular? Por que erigir uma estátua no presente para o índio Galdino Pataxó é incompatível com a existência de outros monumentos do passado? Por que não nos concentramos em erigir monumentos em vez de destruir os que já existem? Do alto da consciência política e intelectual de vocês, o que vocês esperam que aconteça quando toda a memória da barbárie que nos é constitutiva for apagada do mapa? Ela sobreviverá na consciência? Se não houver essa memória, como vocês esperam ser capazes de reconhecer essa mesma barbárie no presente e no futuro quando ela acontecer?

Nenhum monumento, imagem ou obra de arte promove a barbárie. Quem promove a barbárie são as pessoas com suas próprias ações umas contra as outras. É isso o que quer dizer a famosa frase tão citada mas pouco compreendida de Paulo Freire, que disse que a “Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. As pessoas transformam o mundo”. O Monumento à Bandeira de Victor Brecheret e a Estátua do Borba Gato em São Paulo são parte desse nosso legado educacional. Eles são como livros, inertes por si mesmos se não forem lidos por alguém. E alguém pode lê-los de muitas formas possíveis. Ao invés de queimar os livros e destruir os monumentos, não competiria a nós conseguirmos superar o completo analfabetismo funcional que nos impede de ler e interpretar esses documentos visuais adequadamente, ao ponto de certos historiadores sequer terem consciência de que estão lidando com documentos históricos, tal como a Carta de Pero Vaz de Caminha? Como poderemos nos educar se não formos capazes de preservar os documentos? De onde virá o nosso aprendizado?

Cabe lembrar ainda que a palavra “monumento” tem na sua raiz etimológica o verbo latino “moneo”, que significa avisar, instruir, alertar, chamar a atenção. Não é isso que fazem os monumentos como documentos da memória coletiva? Nos alertar de como era o passado, seja para podermos continuar a fazer certas coisas, seja para nos prevenir de fazermos outras? A questão que muitos parecem ter perdido de vista, nesses tempos de polarizações macarthistas entre “petralhas e coxinhas” e tanto extremismo, é que todo monumento, imagem ou obra de arte não apresenta significados em ato, prontos, acabados e imutáveis, como se estivéssemos diante de uma prateleira de supermercado e nosso papel se limitasse a escolher passivamente, sem direito a questionamentos nem reclamações no Serviço de Atendimento ao Consumidor sobre a qualidade dos produtos em questão. A realidade é mais complexa do que isso, e ainda há vestígios democráticos do Estado de Direito entre nós porque temos a possibilidade de contemplar um monumento e debater coletivamente sobre seus significados possíveis, ai incluídas as experiências horríveis do genocídio indígena e a destruição do meio ambiente. Se não tivermos o vestígio concreto dessas experiência como lembrança e memória materializadas nesses documentos, como saberemos que um dia elas existiram?

Além disso, para encerrar, faz parte da natureza desses vestígios da memória o fato de que exemplos positivos e negativos estão inscritos ali simultaneamente em potência. Não se pode apenas preservar os bons exemplos, pois bons e maus exemplos são mutuamente constitutivos ao nosso entendimento. Um depende do outro para fazer sentido. Destruir uma das formas de exemplos implica em destruir aquilo que faz a outra ter algum sentido para nós. Mas felizmente ninguém sai por aí destruindo cópias dos Episódios I, II e III da saga do Guerra Nas Estrelas só porque elas contam a história do vilão mais importante da saga. Isso seria estupidez! E assistimos a esses episódios – eu pelo mimagem-2enos assisto – para termos a chance de aprender que há também caminhos errados. Isso nunca invalidou o aprendizado que pude ter com a saga original nos Episódios IV, V e VI da jornada do herói vivida pelo Luke Skywalker. Um aprendizado reforça o outro. Se formos sair por aí destruindo tudo aquilo que representa coisas que hoje condenamos, com o tempo, só restará apenas uma pálida e empobrecida lembrança do que fomos um dia, se é que alguma lembrança sobreviverá. Nesse dia, teremos todos nos matado mútua e definitivamente e nenhum arqueólogo extra-terrestre do futuro conseguirá escrever com propriedade essa nossa história, porque dela não restarão mais vestígios.

Marcelo Hilsdorf Marotta