Por Alessandra Caneppele e Flávio Ribeiro de Oliveira.

temer2O possível governo Temer anuncia, sob os aplausos da grande imprensa e do empresariado nacional, a ampla e irrestrita privatização do Brasil: na xepa, pretendem vender barato o estado brasileiro. Afinal, para que serviria um Estado?

A classe abastada brasileira mora em ruas privadas, em condomínios cercados por muros privados e protegidos por empresas privadas de segurança. Quando deixa seus feudos, o faz em carros privados, até a escola privada de seus filhos, ou até o hospital ou médico também privados. Após pagar por estacionamentos privados, ela passeia nas alamedas das praças privadas dos shoppings. Seus membros desfrutam, em ambientes fechados, os serviços exclusivos garantidos pelo pagamento em dinheiro. Para esses, o espaço da cidade, público, lhes é alheio, assim como o exercício da cidadania que é próprio a esse espaço: basta-lhes praticar a vida pública nas férias, em algum metrô de uma cidade qualquer de primeiro mundo, durante seus dias de merecido encontro com o mundo civilizado, lá fora.

Para essa elite, o estado parece ser apenas um fardo inútil e caro a ser carregado e sustentado: melhor se livrar desse peso morto! Deixemos de lado aqui a discussão de como essa classe, que despreza o estado e se diz completamente self-made, omite de seu discurso o fato de que é justamente a sua promiscuidade com um estado corrupto e elitista que permite a manutenção desse universo privado paralelo – quem quiser que acredite no conto da carochinha de que a elite brasileira não mama nas tetas do estado e que quer, com a privatização, andar apenas com as próprias pernas liberais! Outra ilusão de independência nos interessa abordar aqui.

Para aqueles que transitam apenas em seus helicópteros, entre um jato e outro em direção a Paris ou Nova Iorque, o modelo exclusivista da elite brasileira parece funcionar. Bem longe da linha limite entre o paraíso privado e o inferno dos excluídos, essa casta pode ser feliz sozinha em qualquer lugar do mundo. Mas podemos dizer que o mesmo vale para a classe média brasileira, apinhada em seus condomínios e nos congestionamentos, e que agora engrossa o canto sedutor da privatização? Para esses mortais também valeria o mesmo refrão do estado mínimo, entoando o fim de políticas inclusivas em nome da solução privada dos condomínios?

As crises hídricas dos últimos anos, bem como o surto de dengue e correlatas doenças, mostram constantemente uma classe média chocada com a possibilidade de ser alcançada em seus redutos privados pelo descaso das políticas públicas e da administração dos serviços coletivos: a cerca, funcional na manutenção de um sistema de seguro e segurança privados contra a violência urbana, se esgarça, e o clube fechado se apavora momentaneamente com sua aproximação às agruras do resto da nação. Embora tenham mais acesso a grandes caixas d’água e enormes potes de repelente, nesses momentos os um pouco mais abastados sentem o descaso público: afinal, a demarcação entre remediados e pobres não é tão precisa como se gostaria e a penúria pública chega ao privado provocando – por que não dizer? – pânico!

Ironicamente, a opção Temer, em suas próprias letras, carrega consigo a dupla verdade da famosa frase “nada a temer senão temer”. De um lado, os excluídos, sem nada a perder, desprovidos de tudo, até mesmo do temor, que cada vez mais não tem e não terão medo de ocupar as ruas: Temer, decididamente, não é para eles! Do outro lado, os que, optando por Temer e a solução privatista, optam por TEMER: será cada vez mais acuados na sua fatia estreita e privada da nação, única com direito a existência, que esses sobreviverão sobre o público soçobrado. Hoje não temos apenas uma imensa parte da nação nas ruas escolhendo viver e lutar sem medo, contra Temer: temos também uma elite escolhendo viver no país do medo!

Os privatistas capitaneados pela opção Temer proclamam a necessidade de desmontar o estado, a coisa pública e suas práticas cidadãs e inclusivas. Basta manter seus direitos exclusivos, exercidos na esfera liberal privada. Fazem a opção pelas ilhas de riqueza, isoladas: que, entre os feudos felizes, sobrevivam os sem terras, sem educação, sem saúde, sem segurança; que, para além da grama arborizada dos condomínios, se espalhe a terra devastada.

Por quanto tempo nossa elite acha que vai sobreviver em seu paraíso privado acrescentando apenas mais uma nova fileira de tijolos, mas uma cerca elétrica ou mais uma câmera de segurança sobre seus muros? A história já viu o horror da peste nascendo na terra de ninguém extramuros e o terror alastrando-se intramuros. Incautos, desconhecendo as lições da história, nossos novos privatistas desafiam o medo – e adubam domesticamente com seu exclusivismo o crescimento dos que são e serão seus próprios terrores privados.

Hoje, o primeiro mundo vê seus limites invadidos pelos desabonados do terceiro – e se inquieta, apavorada, sem saber o que fazer com o refluxo daqueles excluídos de sua própria riqueza e paz. Na América do Norte, o fenômeno Trump mostra como também os americanos não sabem o que fazer com os refluxos de suas fronteiras. A privatização orquestrada por Temer e cia, urdida segundo interesses dos ricos desse andar de cima do globo, insiste na lógica dos interesses internacionais segundo a qual o mundo abastado pode dividir sem problemas o planeta com bilhões de excluídos, sem ter seu próprio bem-estar afetado. Ilusão incauta dos que insistem em não ver o que sobrevive à espreita de cada porta fechada. O programa Temer alardeia o futuro de um “país sem rancor e sem ódio”, confessando saber quais são os perigos abertos ao implementar políticas de exclusão: os campos de extermínio são a prova histórica mais contundente da associação entre exclusão e ódio.

Nossa elite escolhe agora, mais uma vez, excluir e aceita pagar sua escolha com o aprofundamento de seus temores e medos. Ela se recolhe, se atrofia, fechada em suas redomas. Vimos o quanto as práticas inclusivas dos últimos anos fizeram florescer nossa cultura: na mistura nas ruas dos jovens de todas as partes das cidades, a música, a poesia, o cinema, as artes plásticas, ganharam uma diversidade fascinante em seu ineditismo. A opção TEMER, sendo a opção pelo medo, recolhe novamente os cidadãos das ruas e os fecha em seus guetos. Por isso ela traz acoplada consigo a ressurreição da ode ao espetáculo horripilante da tortura. Por isso também ela chama uma resistência feita na ocupação dos espaços públicos, únicos nos quais a cidadania pode ser exercitada.

H.G.Wells descreve em A máquina do tempo um mundo futuro dividido em dois: na superfície, em prados lindos e verdejantes, uma sociedade quase etérea de humanos aparentemente vivendo em um estado beatificante de perfeição. Mas, sob essa aparente utopia humana, o cientista viajante descobre uma outra população, repugnante e primitiva, habitante dos subterrâneos. O mundo do condomínio burguês de cima não é tão feliz assim: eles vivem sob o domínio do medo dos seres de baixo, que saem das trevas à noite e os caçam, para se alimentarem. A felicidade dos de cima não passa de ilusão: o medo a corrói – e eles não podem nem viver, nem dormir tranquilos.

Não por acaso a comédia traveste Michel Temer com a indumentária de mordomo de filme de terror: solícito, prestativo, é através dessa personagem ambígua, protetora externa do lar privado, que o terror se introduz. Encastelados como certa donzela, em nosso universo privado, acreditamos ter deixado o perigo do lado de fora – mas, descobrimos, atônitos, que o estávamos alimentando sob nosso teto! Temer não traz consigo o sossego burguês; pelo contrário: ele introduz, já com seu nome, o temor como fundamento do mundo privado da elite mantido segregado e em oposição ao espaço público! Aos embalados pela solução do nome TEMER: durmam, enquanto o medo não vem! Para manter seus privilégios privados a elite subscreve mais um pacto com o diabo. No nome, anuncia-se já a paga: TEMER, eternamente, o mundo que insistirá em sobreviver além das paredes caiadas da casa grande. Seu privilégio exclusivo, por fim, será aquele do medo.

Alessandra Caneppele, psicanalista e Flávio Ribeiro de Oliveira, professor IEL-Unicamp