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A presidenta Dilma Rousseff nesta semana, em cerimônia na qual recebeu juristas contra o impeachment

Analistas políticos de todo o Brasil já dão como inevitável o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Parte do país comemora: será o “fim” de um governo inábil, “corrupto” e paralisado. A eventual chegada do vice-presidente Michel Temer à chefia do Poder Executivo será, na opinião de muita gente, um bálsamo para os problemas que hoje afligem o Brasil. Outra parte do país, na qual me incluo, está terrivelmente preocupada com a situação, e se mobiliza para que o golpe não aconteça.

Ontem a presidenta reuniu jornalistas estrangeiros em seu gabinete no Palácio do Planalto. Vieram profissionais de veículos de imprensa de influência global, como o americano The New York Times e o espanhol El País, para ouvir o que ela tinha a contar. Dilma se disse vítima de um golpe de Estado, porque o impeachment que ganha forma não possui base legal. E repetiu: não pretende renunciar ao cargo para o qual foi eleita. A presidenta acusa uma movimentação que pede sua renúncia, justamente porque, segundo ela, não há uma razão sólida para que o impeachment aconteça. E ela tem toda razão.

Inúmeras pessoas defendem o processo de impeachment. Está previsto na Constituição!, bradam, acusando a ignorância daqueles que discordam. Me cansei de ler no Facebook, antecedendo as defesas do impedimento, algo como: “Vamos deixar de uma vez por todas bem claro…”. E eu leio as teorias repletas de simplismos e rodeadas por uma burrice cristalizada, burrice com a qual pretendem nos dar uma aula de democracia, algo que vem sendo tão comum no nosso Brasil nos últimos meses. Hoje, todos estão muito “politizados”; eu, humildemente, me orgulho de me interessar pela política nacional muito antes de esta crise horrorosa começar.

O impeachment da presidenta Dilma Rousseff, se vier, será um golpe de Estado e portanto, não pode acontecer. Se acontecer, como parece provável neste momento, poderá ter como consequência um país ingovernável diante da ruptura democrática que virá imediatamente depois. Há uma frente democrata sólida a defender a permanência de Dilma no poder, não por considerar seu governo bom, mas porque ela foi eleita pela maioria dos brasileiros nas eleições de 2014 e não há qualquer razão que justifique sua saída do cargo.

De fato, a Constituição prevê a possibilidade de impeachment, mas ela é clara quanto ao que chama de “crime de responsabilidade”, a única justificativa plausível para se depor um presidente eleito. Dilma não cometeu crime de responsabilidade algum, nem sequer é investigada pela operação Lava Jato. Não surgiram questionamentos quanto à sua honestidade pessoal. Vou dar um exemplo: o nosso Código Penal prevê uma pena para quem pratica roubo, por exemplo. Mas se eu não roubei nada, como posso ser punido apenas pelo fato de que a sanção em questão é prevista pela Lei? É o que vem acontecendo com Dilma. Existe a “criminosa”, mas falta o crime.

Dilma teve o azar de ser a presidenta da República neste momento de efervescência da política nacional, somado ao fato de que conduz o país de maneira terrivelmente inábil politicamente. Ela errou muito e não soube contornar a crise anunciada, mas sua honestidade pessoal é justamente a grande ironia da questão. A gestão de Dilma foi obrigada a engolir uma aliança com o PMDB, herdada do governo Lula, com a qual a presidenta não soube lidar. Sua falta de tato e sua administração cheia de dedos para tratar de assuntos graves já eram grandes complicadores, que pioraram muito após o início do segundo mandato, quando ela decidiu assumir um plano de governo totalmente contrário ao que havia proposto para ser eleita, com a justificativa do combate à crise econômica. Dilma perdeu, numa só tacada, o apoio das elites que pretendia conquistar, além das tradicionais bases sociais que dão sustentação ao PT. Conta, hoje, com algo em torno de 10% de aprovação popular. Um desastre.

Eu parei de defender o governo ali por 2011, quando percebi que a presidenta não tinha os posicionamentos progressistas que eu esperava dela quando a elegi. Em 2014, decidi dar-lhe novo voto de confiança, por considerá-la uma opção melhor do que o candidato da oposição e por admirá-la muito pessoalmente. Novamente, Dilma me decepcionou como gestora. Mas continuo confiando em suas boas intenções, em seu espírito republicano e em sua formidável inteligência. Lamentavelmente, tudo isso passa longe de ser suficiente para governar um país como o Brasil, e este ponto precisa ser urgentemente repensado caso de fato pleiteemos alguma mudança para o futuro.

Agora veja que curiosa a situação à qual chegamos. Não há contra a presidenta Dilma acusação sobre crime algum, nem mesmo para justificar o impeachment. Milhões foram às ruas pedindo seu afastamento, um fato legítimo e admirável para conferir ao governo uma mudança drástica de rumo – deslegitimar o grito desses brasileiros é um erro que as forças progressistas não podem cometer. O Congresso Nacional, composto por uma maioria sabidamente conservadora, deveria ouvir a voz das ruas, sim, mas especialmente mostrar responsabilidade quanto ao que determina a Constituição. Os manifestantes querem o fim da corrupção, um pedido perfeitamente legítimo. Mas veja o que conseguiremos: o afastamento de uma presidenta sabidamente honesta, contra quem não há acusação alguma, por quem nomes renomados da política nacional põem a mão no fogo. Para coroar, o processo será conduzido pelo notável Eduardo Cunha, que segue inacreditavelmente como o presidente da Câmara dos Deputados do nosso país. E nós estamos mesmo aplaudindo esse processo? Tem coisa muito errada aí. Há algo de podre na nossa sociedade.

Penso que talvez o grande erro da Constituição de 1988 tenha sido desconsiderar os instintos antidemocráticos de uma parcela considerável das nossas elites, pessoas que não estão nem aí para o povão e nem muito menos para a boa condução dos recursos públicos, e que encabeçam os pedidos de afastamento da presidenta, levando em seus calcanhares milhões de pessoas, bem-intencionadas ou não. A carta promulgada pelos legisladores após o fim da ditadura nos deu uma democracia plena, com a qual muitos poderosos não conseguem compactuar. De minha parte, fico preocupadíssimo. Discordo de Dilma Rousseff, sim, mas defenderei a legitimidade de seu mandato até o final, porque a não ser que se prove claramente um crime de responsabilidade por parte da presidenta, seu afastamento põe em risco as nossas instituições e, em especial, a democracia, pela qual tenho muito apreço. Ainda tenho esperança e independentemente do que ocorra, terei orgulho de dizer aos meus filhos que assumi o lado considerado correto por mim e por outros milhões de brasileiros.

Que este 2016 seja um período de conquistas democráticas e solução de conflitos, e não uma cicatriz horrenda em nossa história.